João Paulo Feliciano levou o festival à galeria

O artista, músico e director criativo do Nos Primavera Sound transpôs a sua experiência do festival para a galeria Cristina Guerra. O resultado desse processo chama-se Primavera.

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Foi na segunda-feira após o encerramento do Nos Primavera Sound de 2015, de que ele é o director artístico, que se deu a revelação. Durante o festival, o artista, músico, editor e director de projectos João Paulo Feliciano optou por não tirar fotos e publicá-las nas redes sociais. Mas naquele dia resolveu fazê-lo.  

“Estavam a desmontar as letras do pórtico da entrada, todas amontoadas no chão, e resolvi tirar uma foto e difundi-la pelas redes sociais. Chamei-lhe Nos Primavera Sound unspell, um neologismo, já que não existe a palavra, que ali era uma metáfora linguística para desmontar. Passado algum tempo, o [músico] Rafael Toral fez um comentário no Facebook: ‘bela peça’, escreveu ele. E eu volto a olhar para a imagem e para a legenda e percebi que realmente aquela podia ser uma peça minha do circuito expositivo. Foi uma espécie de epifania.”

Saiu do hotel onde pernoitava, pôs-se a andar a pé pela cidade do Porto e nessa mesma noite concebeu mentalmente toda a exposição. “Estava com a memória fresca do festival e com a porta aberta por aquele comentário. Comecei a pensar que poderia recontextualizar e retrabalhar o que fazia no festival.” Nada de mais, afirma ele. Ao longo dos anos não tem feito outra coisa, alimentando o seu trabalho artístico com os acontecimentos ou as motivações mais prementes da sua vida em determinados momentos.

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Desta feita, tratava-se de transpor a sua experiência do festival para uma exposição. E foi assim que nasceu Primavera, patente na galeria Cristina Guerra, em Lisboa, até 12 de Maio, contendo objectos, sistemas construtivos, materiais, formas, imagens, cores, metáforas ou acontecimentos. Tudo isto transposto para peças que resultam de elementos materiais resgatados do recinto do festival – é o caso da peça Parque na cidade –, ou que com ele estabelecem uma ligação de natureza conceptual.

“O que me aliciou foi o facto de poder olhar, pensar e idealizar peças com a liberdade com que sempre pensei a minha actividade como artista”, afirma ele. Se até ali o recinto do Parque da Cidade havia sido uma extensão do seu trabalho no atelier, agora tratava-se de inverter essa relação, pensando à mesma na música enquanto fenómeno primordial da cultura popular.  

Nostalgia progressista

Em 2015, o festival foi muito marcado pelos dois concertos de Patti Smith e existe uma peça a recordá-lo. “A experiência do concerto da Patti Smith só vi o do segundo dia – contribuiu para que a edição do ano passado fosse especial, pelo menos para mim”, declara Feliciano, “e ao pensar na exposição foi muito claro que o concerto dela iria ser uma das coisas em que queria pegar”. Fê-lo a partir de um vídeo.

“Queria pegar nessa relação do vídeo enquanto memória e mediação, porque esse havia sido um dos aspectos importantes da minha relação com o concerto por não ter levado o telemóvel para tirar fotos, focando-me no que se passava em palco, o que me parece ter sido partilhado pela maior parte das pessoas. A questão do silêncio também era importante para mim e aí nasce a ideia do vídeo Silent horses, com o registo da música Land – onde ela usa a palavra 'horses' – a servir de matéria ao mesmo.”  

Ao longo dos anos, quer na presente exposição, quer noutras, em especial The Blues Quartet (2007), João Paulo Feliciano tem explorado a intersecção entre a arte visual e a arte sonora, materializando ideias que remetem para a nossa relação com a música. O mesmo tipo de preocupações está presente no terreno do festival Nos Primavera Sound quando assume o papel de director criativo.

Em 2012, em conversa com ele, aquando da primeira edição do festival no Porto, dizia-nos que o seu trabalho iria ser procurar a especificidade de uma conjugação de factores (o patrocinador, o recinto, a música e a cidade), fomentando-os, para que a experiência fosse um todo. Quando a quinta edição está quase aí, não tem dúvidas de que o balanço é positivo.

“O festival conseguiu tornar claro que há outros paradigmas para construir um dispositivo que permite a uma série de bandas tocar para as pessoas, propondo formas mais autênticas e profundas de todos se relacionarem com a música ao vivo. O meu pensamento, desde a primeira edição, é o de recuperar o máximo de respeito pela experiência musical. E esse respeito consegue-se pensando no todo, sejam aspectos técnicos, comunicacionais, institucionais ou outros interesses, que eu tento interpretar o melhor possível, para depois dar respostas ou potenciar.”

Seja no recinto do festival, seja no espaço expositivo, há uma dimensão que está presente em ambas as situações. Aquilo que ele chama de “nostalgia progressista”, que se traduz nessa ideia de recuperar ou preservar elementos que não quer esbanjar no presente ou futuro. “Num mundo em contínua desmaterialização, digitalização e fragmentação, é importante recuperar a importância do mundo físico, ou pelo menos cuidar dele, dando atenção ao que se mantém perene”, diz.

“Na exposição isso está traduzido em fotos a preto-e-branco, por exemplo, e no festival na forma como penso, por exemplo, os ecrãs laterais do palco, pelo efeito distractivo e pelas luzes impositivas. Há recintos em que os ecrãs fazem sentido, mas sempre que o recinto o permitir, como no Porto, devem ser evitados.”

No festival, afirma, e de forma diferente na galeria, aquilo que lhe interessa simplesmente é pensar a relação entre a música e o espaço onde ela acontece.

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