Boris contra Cameron: no duelo de rivais joga-se o futuro do Reino Unido

Popular mayor de Londres nunca perdoou ao primeiro-ministro ter ocupado o lugar para o qual se considerava predestinado. Ao entrar na campanha pela saída da UE, transformou o referendo e desafiou o rival para uma luta que só um poderá vencer.

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“Madrugada de 24 de Junho. O Reino Unido acabou de aprovar por escassa margem a saída da União Europeia. Defensores do ‘Brexit’ empunham jubilantes a Union Jack em Trafalgar Square.” David Cameron mantém-se como primeiro-ministro, mas apenas por alguns dias – a instabilidade e o clima de guerra no Governo forçam a sua demissão. Boris Johnson é eleito líder do Partido Conservador. “Em Downing Street, o novo primeiro-ministro diverte os jornalistas falando em latim, antes de entrar na sua nova casa, aparentando tropeçar no degrau da porta”.

O simulacro é de Gideon Rachman, jornalista e comentador do Financial Times num artigo recente sobre a camisa-de-onze-varas que espera o país se, como algumas sondagens admitem, os britânicos aprovarem em referendo a saída da UE. Mas Boris Johnson – ou Boris apenas, como todos o tratam – não é uma personagem ao acaso neste exercício de antecipação.

Cruzar a porta do nº10 é o sonho da vida do político que, em criança, queria ser tão só “rei do mundo”. Uma ambição que o ainda mayor de Londres nega repetidamente apenas para a tornar mais evidente. Um desejo feroz de um homem que se vê como o mais inteligente da sua geração, predestinado a seguir os passos de Winston Churchill, seu ídolo, e que com a imagem pública que construiu para si – misto de bufão, velho aristocrata e intelectual desbocado – é o mais popular político britânico. O seu drama é que o lugar do “velho leão”, no Governo e no Partido Conservador, foi tomado por outro – não um político mais experiente, mas um antigo colega de escola; filho como ele das elites privilegiadas de Inglaterra, sem o seu carisma, mas mais determinado.

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Boris Johnson e David Cameron Neil Hall/Reuters

Passaram dez anos desde que Cameron foi eleito líder dos tories, iniciando a reabilitação que levaria o partido de novo ao poder em 2010. “Cameron venceu a estrela das estrelas e conseguiu o prémio principal – no entanto, Boris Johnson parece nunca ter reconhecido essa vitória e muito menos respeitá-la”, escreveu James Kirkup, editor de Política do Telegraph a 21 de Fevereiro, dia em que o mayor de Londres manteve o país em suspenso, à espera daquele que se revelaria o golpe fatal na aparência de amizade que ambos mantiveram até então.

O fim da trégua

O primeiro-ministro tinha acabado de regressar de Bruxelas, trazendo na mala um acordo negociado a ferros com os parceiros europeus. Após anos de exigências, saiu da cimeira com luz verde para cortar nos apoios aos imigrantes europeus e com um reconhecimento formal de que o Reino Unido não fará parte de uma “união cada vez mais estreita”, seja política seja económica. 

“Penso que toda a gente deve prestar tributo a David Cameron por aquilo que ele conseguiu em tão pouco tempo”, mas “não creio que alguém possa de forma realista dizer que esta é uma reforma fundamental da UE ou da relação do Reino Unido com a UE”, afirmou Boris Johnson, ao anunciar à multidão de jornalistas que o esperavam à porta de casa que, após uma “dolorosa ponderação”, tinha decidido juntar-se à campanha dos eurocépticos.

No seu jeito habitual – mas já com roupa e pose de homem de Estado – professou o seu “amor por Bruxelas”, onde foi durante anos o exuberante correspondente do Telegraph, para de seguida o trair em nome de um “melhor acordo para o país”. De uma penada, tornou-se o porta-estandarte da campanha pelo “não”, a quem até aí faltava uma figura com o seu peso político, e o líder de facto dos conservadores eurocépticos, a facção hoje dominante no partido.

Não foi difícil de adivinhar a fúria de Cameron, que recebeu o rival mal chegou de Bruxelas e lhe terá oferecido um lugar à escolha no Governo. A resposta chegou sem qualquer vénia – um SMS, recebido em Downing Street, nove minutos antes do anúncio público.

O contra-ataque foi feroz, directo e estilhaçou qualquer trégua que ainda pudesse restar entre os dois lados de uma batalha que ameaça deixar marcas insanáveis entre os tories. “Não me vou recandidatar. Não tenho outra agenda que não seja [defender] aquilo que é melhor para o país”, disse Cameron no Parlamento, fazendo mira às ambições de Boris, que sentado nas bancadas de trás gritava: “disparate, disparate”.

A fúria de Cameron era justificada – um em cada três britânicos admite ter em conta a posição do mayor de Londres no momento de decidir o seu voto, e a sua entrada em campo bastou para que a cotação da libra caísse a pique no dia seguinte. Mas há uma dimensão mais profunda, quase íntima, nesta “traição” de Boris ao antigo camarada de escola, uma jogada onde a ambição se mistura com uma vingança, último capítulo de uma história de rivalidade que deverá ter o seu episódio final a 23 de Junho.

Bullingdon Club

James Kirkup acredita que “um dia, alguém escreverá um livro sobre David Cameron e Boris Johnson”. “O problema é que se for rigoroso, ninguém acreditará nele”, diz o jornalista, sublinhando o quão improvável é o futuro do país estar dependente “da relação complicada e não totalmente madura” entre os dois. O livro ainda não foi escrito, mas a disputa já foi comparada ao choque de titãs que durante mais de uma década opôs Tony Blair a Gordon Brown e foi argumento de um filme – o docudrama When Boris Met Dave, exibido pelo Chanel 4 em 2009, meses antes de Cameron ser eleito primeiro-ministro.

Os 80 minutos da trama encontram Boris e Cameron na alma mater de Oxford, vindos de Eton, a mais elitista das escolas privadas do Reino Unido. Os dois chegaram em anos diferentes (o agora primeiro-ministro é dois anos mais novo), mas a trama centra-se no Bullingdon Club e na única fotografia que testemunha a convivência de ambos na fraternidade, reduto dos filhos de família e notória pelos jantares em que os seus membros, vestidos de fraque, se embebedam e destroem restaurantes.

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David Cameron em cima (o segundo a contar da esquerda). Boris Johnson em baixo (é o terceiro a contar da esquerda) DR

Naquela fotografia – dez jovens encenando a pose dos líderes que haveriam de ser – estão carimbados séculos de privilégio, o mundo à parte em que se movem as classes altas do país. Mas enquanto Boris troçou de si próprio ao ser confrontado 20 anos depois com a imagem, Cameron confessou-se “desesperadamente envergonhado”. Em vésperas de eleições, a fotografia abalou a imagem de homem comum que Cameron construiu. Mas provou também que, por muito idêntico que seja o seu percurso, as personalidades de ambos não podiam ser mais diferentes.

“Cameron não quer parecer aquilo que realmente é, um homem muito rico de uma família muito antiga com ligações à família real”, escreveu, em 2010 no jornal Guardian, Francis Beckett, biógrafo de vários primeiros-ministros, sublinhando que o líder conservador fez por perder o sotaque típico das classes altas. Boris, pelo contrário, nunca se envergonhou de onde vem. Faz, aliás, questão de sublinhar, pela entoação, pelos gestos e pelas palavras que é um toff (queque, numa tradução livre), mesmo que lhe faltem as credenciais aristocráticas – a sua é sobretudo uma família cosmopolita, que mistura sangue turco, francês e judeu.

E enquanto os antigos colegas descrevem o Cameron de então como discreto, afável sem ser popular, inteligente sem ser notável, Boris Johnson construiu em Eton e Oxford uma aura de predestinado. Era a mente brilhante e irrequieta, o excêntrico que arrastava atrás de si uma corte de admiradores, senhor de uma notável capacidade para se sair bem de situações embaraçosas, como o dia em que subiu à cena para representar Shakespeare e, não tendo ensaiado, colou papéis com as deixas nos vários pilares do cenário. Passou a actuação a correr de um lado para o outro, sob o riso e os aplausos da assistência. “Johnson é o tipo de pessoa que consegue fazer das suas excentricidades uma virtude […], aquele que baseia a sua vida na imagem adorável do palhaço”, afirmava o jornal Independent em 2011, quando era já claro que, sendo Cameron o primeiro-ministro, era Boris que os tories adoram.

Ambição e poder

O que os dois têm em comum é uma enorme ambição, ainda que em Boris esse desejo de superação fosse visível muito mais cedo. Entrou como “bolseiro do rei” em Eton, onde ocupou os principais cargos reservados aos alunos, e ao chegar a Oxford definiu como objectivo ser eleito para a cobiçada presidência da associação de estudantes, o que conseguiu à segunda tentativa. “Boris era o lutador, o vencedor de prémios, o rapaz que tinha de provar que pertencia ali, enquanto David ocupava sem esforço um lugar para o qual estava destinado”, conta Toby Yong, produtor do docudrama e contemporâneo de ambos em Oxford.

Os seus percursos distanciam-se à saída da universidade – Cameron ganha a sua reputação como assessor na direcção do Partido Conservador, Johnson irá tornar-se na coqueluche dos eurocépticos como correspondente do Telegraph em Bruxelas –, mas voltam a tocar-se em 2001 quando ambos são eleitos para o Parlamento. Só que em 2005, quando a oportunidade surge, é Cameron o único que está em posição de chegar à liderança do partido, uma ultrapassagem que Boris nunca perdoou, sobretudo depois de Cameron o ter relegado para um lugar secundário na sua equipa.

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Boris Johnson tornou-se o principal rosto do "não" à UE Andrew Yates/Reuters

Com essa via para o poder bloqueada, Boris escolheu a autarquia de Londres como púlpito e, depois da improvável vitória em 2008, foi dali (e da coluna semanal que mantém no Telegraph) que lançou incontáveis farpas contra “Dave”. A mais virulenta foi disparada em 2012, quando acusou o Governo de querer uma “limpeza étnica ao estilo do Kosovo” nas cidades com os anunciados cortes nos subsídios à habitação. Downing Street nunca deixou de estar na sua mira, mas em público repetia que tinha tantas hipóteses de chegar a primeiro-ministro “como de ficar preso num frigorífico ou reencarnar como uma azeitona”.

Mas o referendo em que David Cameron joga o resto do seu mandato era a oportunidade que Boris Johnson não podia perder. “Acredita que, mesmo que o Reino Unido fique [na UE], ele é o tipo de político popular que Cameron vai querer ao seu lado, para mostrar que os conservadores são uma grande família”, disse ao New York Times Tony Travers, da London School of Economics. “Mesmo que o seu lado perca o referendo, vai conquistar o coração e a mente de muitos no Partido Conservador”, acrescenta o seu biógrafo, Andrew Gimson, ouvido pela CNN. Uma semana depois de entrar na campanha, as sondagens davam-no como claro favorito à sucessão de Cameron, bem à frente de Theresa  May e George Osborne, ministros que se mantiveram leais a Cameron.

É pouco provável, porém, que Boris esteja na corrida para perder, nem que seja pelo rombo que tal derrota faria no ego de um homem que, como sublinha Gimson, “se vê a si próprio como muito mais dotado” e “intelectualmente superior” a Cameron. Porque afinal, como lembrou Robert Colvile no site Politico, é no dia 23 de Junho que “a dúvida sobre qual dos dois irá para os livros de História como o maior talento político vai ficar finalmente resolvida”. “E com ela, claro, o futuro do país”.

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