A escritora inglesa Jenny Diski morreu aos 68 anos

Romancista que tratou corajosamente temas como a depressão e a loucura e escreveu alguns notáveis ensaios e livros de memórias e viagens, soube em 2014 que tinha um cancro de pulmão inoperável. Quando era uma adolescente problemática, Diski foi adoptada por Doris Lessing

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Jenny Diski com Doris Lessing dr
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Jenny Diski DR

A ficcionista e ensaísta inglesa Jenny Diski, autora de uma dúzia de romances e livros de contos que tratam com invulgar honestidade temas como as obsessões sexuais, a depressão ou a loucura, mas também de obras como Stranger on a Train (2002), um peculiar e premiado livro de viagens sobre os Estados Unidos, ou Sixties (2009), mistura de ensaio e volume de memórias sobre os anos 60, morreu esta quinta-feira aos 68 anos, após ter sido diagnosticada em Junho de 2014 com um cancro de pulmão inoperável.  

Nascida Jenny Simmonds em 1947, Diski era filha de um casal de emigrantes judeus radicados em Londres e teve uma infância difícil. O pai traficava no mercado negro e saiu de casa quando a filha tinha seis anos, a mãe sofreu um colapso provocado pelo abandono do marido (que ainda regressaria para deixar definitivamente a família poucos anos depois), e a própria Jenny esteve algum tempo entregue aos serviços sociais e passou boa parte da sua juventude entrando e saindo de hospitais psiquiátricos.

Aos 15 anos, foi enviada para uma escola que apostava numa educação progressista, o liceu St Christopher, em Hertfordshire, mas nem este aguentou Jenny, expulsa após vários incidentes, incluindo saltar de uma janela do primeiro andar para participar em noitadas de festa na cidade. Dois dias após a expulsão, deu entrada no hospital, com uma overdose de comprimidos de Nembutal roubados à mãe.  

Em St Christopher, conhecera Peter Lessing, filho da escritora, e futura prémio Nobel da Literatura, Doris Lessing. Peter falou à mãe dos problemas da sua colega e Lessing acolheu Jenny em sua casa. A jovem problemática, decerto bastante por influência de Lessing, tornou-se uma excelente escritora, conseguindo manter viva na sua literatura toda a intensa, honesta e provocatória rebeldia que já na adolescência a levava a afrontar todo o tipo de autoridades.

Num recente depoimento publicado na London Review of Books, Diski evocará esses quatro anos que viveu sob o tecto de Lessing em moldes que ilustram bem a sua proverbial frontalidade: “Fui sempre impossível. Perguntava coisas que não deviam ser perguntadas, achando que tinham resposta (…). Levei homens para casa da Doris e fodi-os lá. Não trabalhava o bastante na escola, e durante algum tempo tive um namorado cujo principal desejo era que eu vestisse um uniforme e que costumava encontrar-se comigo para um rápido fellatio antes que tocasse a campainha da escola. Faltava às aulas que achava que não interessavam e ficava no café em frente à escola a fumar e a tomar cafés”.

São também anos em que Diski mergulha a fundo na contra-cultura dos anos 60, praticando o amor-livre, consumindo drogas e ouvindo música psicadélica, um tempo que depois evocará em Sixties. Interessa-se também pelas ideias do psiquiatra escocês R. D. Laing, que desafiava a ortodoxia vigente em matéria de tratamento de psicoses e outras patologias mentais.

Ainda antes de se voltar para a escrita, Diski estuda Antropologia na University College London, mas não chega a concluir a licenciatura, e ao longo dos anos 70 e no início da década seguinte ajuda a fundar e colabora em diversas escolas para crianças que tinham abandonado ou sido expulsas do sistema educativo.

O primeiro romance de Diski, Nothing Natural, saiu em 1986 e deu logo nas vistas, para o melhor e para o pior. História de uma rapariga que se envolve numa relação sado-masoquista. Houve quem elogiasse o arrojo e houve quem escrevesse, como o crítico Anthony Thwaite: “é o livro mais nojento que alguma vez li”. As feministas também não gostaram, e a revista Sisterwrite baniu Diski da lista de colaboradores.

Seguiram-se romances e livros de contos (nenhum deles editado em Portugal) como Rainforest (1987), novamente povoado por obsessões sexuais, Then Again (publicado em 1990 e reeditado pela Granta em 1998),uma exploração dos limites entre sanidade e loucura, ou Happily Ever After (1991), protagonizado por uma mulher que teve uma infância atormentada e que sofre de graves perturbações mentais, mas que aos 68 anos – precisamente a idade em que Diski morreu – decide que é tempo de ser finalmente feliz.

Monkey’s Uncle (1994), The Vanishing Princess (1995) e The Dream Mistress (1996) são outros dos seus romances dos anos 90. O seu último livro de ficção, Apology for the Woman Writing (2008), recupera a história real da protofeminista Marie de Gournay, autora de Égalité des Hommes et des Femmes (1622), discípula do filósofo Michel de Montaigne.

A par da sua carreira de ficcionista, Diski publicou também ensaios, volumes de memórias, livros de viagens e outras obras. São quase sempre livros difíceis de arrumar num determinado género, como acontece com Skating to Antarctica (1997), que é ao mesmo tempo o relato da expedição que fez ao Pólo Sul e o testemunho de uma viagem interior. No obituário de Diski que escreveu no Guardian, Kate Kellaway recorda um parágrafo deste livro que adquire uma nova ressonância com a morte da autora: “Como a depressão me atingiu, e tive de a suportar, descobri que era possível, passado algum tempo, alcançar uma espécie de felicidade totalmente desligada do mundo. Queria estar, indisponível, nesse lugar sem dor. Ainda quero. É de um branco colorido e cheio de um silêncio cantante. É um interminável rinque de gelo. É a Antártida”.  

No seu último livro, What I Don’t Know About Animals (2010), questiona com a originalidade habitual a relação da espécie humana com os restantes animais que habitam o planeta.

Quando soube que tinha um cancro de pulmão terminal, disse ao New York Times que se sentiu “intensamente viva” e que a proximidade da morte lhe aguçou a percepção: “Nos últimos dias, consegui ver a minha vida de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem, e com um profundo sentido da conexão entre todas as suas partes”. E numa entrada do diário que publicou em folhetim na London Review of Books, avisa: “Sejam quais forem as circunstâncias, que ninguém diga que perdi uma batalha contra o cancro. Ou que o suportei com bravura. Não estou a lutar, a perder, a ganhar ou a suportar. Não vou personalizar de nenhum modo as células cancerosas que tenho dentro de mim”.

 

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