Svetlana Alexievich: “A História colectiva é uma grande mentira”

A verdade não cabe numa só mente, é uma sinfonia de vozes. A função do escritor é resgatar as pessoas da banalidade. O comunismo voltará, mas num país rico, disse ao PÚBLICO a Nobel da Literatura Svetlana Alexievich em Bogotá.

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É a autora de a autora de O Fim do Homem Soviético (ed. Porto Editora) e de Vozes de Chernobyl – História de Um Desastre Nuclear (ed. Elsinore ) AFP PHOTO / GUILLERMO LEGARIA
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A bielorrussa Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura de 2015, foi a convidada deste ano na Feira Internacional do Livro de Bogotá AFP PHOTO / GUILLERMO LEGARIA

A bielorrussa Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura de 2015, foi a convidada deste ano na Feira Internacional do Livro de Bogotá que começou quarta-feira passada e decorre até ao dia 2 de Maio. Entre as várias conferências, sempre sobrelotadas, falámos com a autora de O Fim do Homem Soviético (ed. Porto Editora) e de Vozes de Chernobyl  História de Um Desastre Nuclear (ed. Elsinore ) em exclusivo.

A arte e a literatura falharam na compreensão do ser humano? Até Dostoiévski falhou no entendimento da alma humana?
Respondo-lhe com Tolstói. Nos seus diários, escreveu o seguinte: “Que Deus nos ajude algum dia a entender a vida”. Porque ele tinha a consciência de que a vida era muito mais do que o que escrevia. A verdade não cabe numa mente apenas. Tem muitas formas de manifestar-se, e está dispersa pelo mundo inteiro.

 A pluralidade de vozes é a única maneira de nos aproximarmos dessa verdade?
Creio que a verdade é como uma sinfonia. Nós estamos aqui a conversar, mas se amanhã nos pedirem para relatar o que se passou, cada um terá uma versão diferente. Só se unirmos as várias versões, as várias vozes, conseguiremos construir a História, que é uma soma dessas experiências individuais. A História colectiva é uma grande mentira. Quando ouvimos as pessoas, elas dizem coisas inesperadas, coisas que não sabíamos.

Os seus livros são compostos quase exclusivamente com essas vozes de pessoas que entrevista. E há nelas uma profundidade e uma poesia que não encontramos na linguagem quotidiana. Como se consegue isso? Depende das perguntas que se fazem? Do ambiente que se cria nessas conversas?
Eu não crio nenhuma situação especial. Busco a verdade na linguagem quotidiana. Nas conversas de muitas horas que tenho com as pessoas, e que gravo, trato de libertar-me de toda a convencionalidade. Não lhes pergunto sobre grandes temas, nem falo de literatura nem de grandes teorias políticas. Falamos sobre a vida, que é algo muito mais autêntico. Mas é preciso fazer as perguntas certas. Não as que os jornalistas geralmente fazem. Se queremos saber outras coisas, é preciso perguntar de forma diferente.

E as pessoas dizem coisas diferentes, mais profundas, quando se lhes atribui mais importância, quando esperamos mais?
Todas as pessoas têm coisas importantes para contar. Se criarmos um ambiente de confiança, calmo, íntimo, surgem grandes histórias. Pessoas sem importância têm grandes histórias. Mas se faço uma pergunta banal, obtenho uma resposta banal. As pessoas têm uma grande necessidade de falar de coisas sérias. Mas acontece que não lhes dão oportunidade. Ninguém as quer ouvir. Vivemos num mundo de banalidade. O trabalho do escritor é resgatar as pessoas dessa banalidade.

Embora por vezes, em situações de puro horror, como era o caso em Tchernobil, os entrevistados no seu livro [As Vozes de Chernobyl, editado em Portugal pela Elsinore] sejam levados a falar sobre pequenas coisas da sua vida, problemas pessoais, peripécias amorosas…
O horror coexiste sempre com a beleza, com o amor. A história, que tenho contado, da mulher daquele bombeiro que morreu. Não queriam deixar, mas ela foi ver o seu corpo ao hospital, e o médico disse: ‘Isto que está aqui não é a pessoa que amas, mas um objecto, que tem de ser destruído’. É uma história de morte, mas também de amor. Porque esse lado também existe sempre, na vida. E eu procuro evidenciá-lo, nos meus livros. Não quero apavorar os leitores com tanto horror. Procuro sempre algo de bom que sobrevive. Algo que nos faça acreditar no futuro. Que nos mostre que há salvação. Como escritora, gostaria de percorrer esse caminho de purificação.

Mas ainda acredita na possibilidade das grandes utopias colectivas?
Eu acredito nas pessoas, embora elas por vezes me assustem. O comunismo era uma ideia boa, bonita, no início. E acho que não está morto. O comunismo vai voltar, mais à frente no tempo.

Mas será algo diferente? A mesma ideia surgirá sob outras formas?
É muito difícil de prever. Não vale a pena, é tempo perdido fazermos previsões, porque as coisas acontecem sempre de forma diversa do que tínhamos imaginado. Mas talvez venha a acontecer num país desenvolvido, como a Suécia. Vejo muitos elementos socialistas nas sociedades europeias. Talvez seja possível que esses elementos vão crescendo, fortalecendo-se; talvez seja possível que nos países mais desenvolvidos, material e espiritualmente, se construa o comunismo.

Não será então através de uma revolução.
Não sei. Ninguém o sabe.

Paulo Moura é o autor do prefácio do livro 'Vozes de Chernobyl  História de um desastre nuclear' na edição portuguesa da Elsinore

O PÚBLICO viajou a convite da agência Invest in Bogotá

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