Casos de violência doméstica continuam "a provocar sentimento de impunidade"

Estudos académicos de elementos da Guarda Nacional Republicana analisaram decisões de magistrados com orientações para aplicar suspensão provisória dos processos

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Magistrados admitem que recorrem à suspensão do processo quando notam que a vítima está inclinada para desistir Daniel Rocha

Os magistrados do Ministério Público (MP) têm orientações para aplicar o mais possível a suspensão provisória do processo em casos de violência doméstica. Para que serve levar um suspeito a tribunal se ele se comprometer a fazer algo em troca, como um tratamento para alcoolismo? Isso pode convencê-lo a não voltar a agredir ou pelo contrário gerar sentimento de impunidade?

Essa era a grande inquietação de Vieira Pinto, chefe do Núcleo de Investigação e de Apoio a Vítimas Específicas no Comando Territorial da GNR do Porto, no ano passado, quando fez uma tese de mestrado em Ciências Forenses na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (UP). Cruzou os dados da GNR com os do MP e da Direcção-Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP). Analisou as 1662 denúncias que deram entrada no distrito do Porto entre 2010 e 2013 referentes a mulheres agredidas por homens com quem mantinham ou tinham mantido uma relação íntima. Encontrou 231 suspensões provisórias, 161 das quais com acompanhamento da DGRSP.  

A maior parte dos homens (1447) estava pela primeira vez a contas com a justiça, mas muitos (215) já iam na segunda, terceira ou quarta vez. Havia um que já tinha oito queixas por violência doméstica e outro que tinha nove. Pareceu-lhe haver uma espécie de padrão nas respostas encontradas pelo MP. "Na primeira entrada do alegado agressor, o sistema poderá determinar o arquivamento do processo, motivado por insuficiência probatória ou pela vontade da vítima; com eventuais reentradas, a decisão do sistema poderá passar pela suspensão provisória do processo ou pela acusação pública", sustenta, na tese.

Os agressores sujeitos a suspensão provisória tinham uma média de reentradas no sistema superior à dos outros e a intervenção da DGRSP não fazia diferença, notou Vieira Pinto. Não encontrou, de resto, "qualquer variável com capacidade de influenciar a decisão do MP em remeter o processo para acompanhamento".

Não discorda do uso da suspensão provisória do processo em casos desta natureza. Na sua opinião, as vítimas de violência não devem ser receptoras passivas do sistema judicial. Devem ser parte de uma resposta geradora de sentimento de justiça e dissuasora de reincidência. Entende, todavia, que  "a quantidade de reentardas necessárias até que o sistema formal de controlo intervenha" e a resposta que existe é tão limitada que “pode provocar sentimento de impunidade no agressor e cepticismo na vítima”.

"O recurso a suspensão provisória do processo pode constituir uma medida adequada, em circunstâncias particulares e sob determinadas condições, não devendo ser resposta generalizada, uma vez que é necessário adequar a cada caso em concreto as diferentes soluções sociais e juridícas", defende.

Uma solução intermédia

Sofia Novais Jamal fez uma tese de mestrado naquele mesmo ano, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UP, sobre o que leva os magistrados a promover ou não aquela medida. Também lhe parece problemático haver orientação para tentar a suspensão provisória sempre que estejam reunidos os requisitos legais, como por exemplo o agressor não ter sido condenado em nenhum processo anterior por violência doméstica. "Tenta-se encaixar os casos na medida em vez de adequar a medida a cada caso", escreve.

Novais Jamal recorreu a métodos qualitativos. Consultou 72 processos de violência doméstica que correram na comarca do Porto entre 2009 e 2014 e entrevistou oito magistrados e chegou à conclusão que olham para esta medida como “uma solução intermédia entre o arquivamento e a acusação”.

Os procuradores tendem a aplicar a suspensão provisória “nos casos de violência contida no tempo, uma vez que os consideram menos graves”. Dizem que uma das vantagens, em relação à acusação, é evitar a absolvição, isto é, que a medida funciona como uma alternativa à insuficiência de prova, como sustentara Vieira Pinto. Desta forma, o suspeito sempre se compromete a assumir injunções ou regras de conduta, isto é, a fazer algo que poderá contribuir para a sua reabilitação, que poderá levá-lo a não repetir a agressão.

Os magistrados admitem que recorrem a esta possibilidade quando notam que a vítima está inclinada para desistir. A suspensão permite respeitar os seus pedidos, vontades e intenções. Num crime tão embrulhado em afectos, as vítimas são muitas vezes ambivalentes e isso pode ser interpretado pelos magistrados como uma atitude de não colaboração. 

“A elevada complexidade deste fenómeno, que apesar da típica reiteração das práticas abusivas, vive do silêncio das vítimas e de eventuais testemunhas, é fonte de enormes dificuldades probatórias”, escreve Ferreira Costa Sousa, outro elemento da GNR, que se debruçou sobre as provas que fundamentam a condenação pelo crime de violência doméstica. “As provas que se conseguem obter são frequentemente escassas e inespecíficas, não permitindo atingir os resultados pretendidos.”

Colega de mestrado de Vieira Pinto, Ferreira Costa Sousa examinou os casos que foram julgados na comarca de Aveiro de 2008 a 2013. Seleccionou 302, de forma aleatória, dos 1233 encontrados e dissecou as sentenças. Nos casos em que houve acusação por violência doméstica, 45,7% tinham sido condenados por esse crime, 7,2% sujeitos a prisão efectiva. Atendendo ao número de denúncias e até de homicídios, também conclui que “o sistema continua a trivializar o fenómeno e os casos a passar impunes”. 

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