O Alentejo entre os aviões, a água e os chaparros

Entre as colagens ao passado de homens rudes e propensos ao suicídio e a crença num presente feito pela indústria aeronáutica ou pela agricultura de ponta no Alqueva, o Alentejo está em trânsito. Já não é o país do homem à sombra do chaparro, mas não é ainda uma região moderna e virada para o futuro.

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No troço do IP8 que liga a auto-estrada do Algarve a Beja há uma série de viadutos inacabados, com ferros ferrugentos ao ar em sinal de incerteza e abandono. O Baixo Alentejo pode parecer nesta estrada um lugar remoto, esquecido, entregue à sua sorte, mas as primeiras oliveiras que se vislumbram à chegada de Figueira dos Cavaleiros provam o erro da primeira impressão. A água chegou e o Alentejo profundo mostra ali outras cores e outra sorte. Um pouco mais a norte também há oliveiras, mas são árvores velhas, desgrenhadas e soltas (embora belas), como as que aparecem na planície que vai de Viana do Alentejo até às portas das fábricas enormes onde a Embraer, a Mecachrome ou a Lauak fabricam componentes para aviões, em Évora.

O Alentejo de hoje é isto. Muito passado e um pouco de futuro, o que já é uma grande mudança em relação há dez anos, quando havia apenas passado e futuro nenhum. A moagem abandonada no centro de Viana ou os gigantescos silos degradados em Cuba são a prova de que o “celeiro de Portugal” fechou e não sabe ainda muito bem que emblema usará a região no futuro. Mas há, ao menos, uma certeza, como diz Roberto Grilo, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDRA): “O Alentejo já não é o chaparro com um homem à sombra.”

Se não é isso, o Alentejo é o quê? Um livro recente de Henrique Raposo (Alentejo Prometido) gerou polémica ao vincar hábitos e mentalidades que eternizam o passado e colam aos alentejanos uma imagem rústica e bárbara. Raposo nota com um sublinhado que as mulheres “já chegaram ao século XXI”, com o seu “cabelo comprido e não aquele corte à homem”, e usam “maquilhagem, saias acima do joelho, óculos de sol”. Por detrás da admiração está um processo de mudança que abriu a região ao país e ao mundo. “Houve uma nova dinâmica nos dois ou três últimos anos. Nota-se uma mudança muito grande. O Alentejo não está de todo parado”, refere Ana Costa Freitas, reitora da Universidade de Évora.

Quando foi estudar para a universidade em Lisboa, o jornalista e escritor Rui Cardoso Martins levava consigo um sotaque que ora servia de alicerce para uma identidade querida, ora alimentava o anátema do rapaz rural, ideal para ser alvo de anedotas. Em 2006, o escritor publicou um livro luminoso, meio verdade meio ficção, sobre as suas vivências em Portalegre (E se Eu Gostasse muito de Morrer). Hoje, diz Rui Cardoso Martins, “esse mundo ainda existe” com os seus lugares familiares na praça central, as suas figuras emblemáticas às quais se devota compaixão, troça e amparo, os seus episódios de comédia, amor e drama. A Internet e as auto-estradas romperam o isolamento, mas o Alentejo guarda em si esse “espírito claustrofóbico e brilhante, o distanciamento, a profundidade e até a ingenuidade” que está nas páginas do livro, nota o escritor.

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O jornalista e escritor Rui Cardoso Martins publicou em 2006 "E se Eu Gostasse muito de Morrer" sobre as suas vivências em Portalegre

Há a Internet, mas há também o cante, que atrai a militância de velhos e jovens e ajudou a criar a ideia de que “ser alentejano é um motivo de orgulho”. Foi esse orgulho que, acredita Rui Cardoso Martins, levou muitas pessoas “a reagir de modo exagerado e infantil às provocações de Henrique Raposo”. Este generaliza comportamentos e banaliza preconceitos, mas, ao mesmo tempo, ajuda-nos a detectar na região uma linha contínua que está longe de acabar. A história familiar que desenrola dá conta da facilidade com que nasciam filhos de pais incógnitos. Hoje a paternidade desconhecida acabou, mas o Alentejo é, de longe, a região do país onde mais nascem bebés fora do casamento. Em Portugal, 11,3% das crianças nasceram nessa condição em 2014. No Alentejo foram 53%. E em Mértola chegaram aos 85,7%.

Do norte ao sul da região vão 260 quilómetros, de leste a oeste 181, mas, apesar da imensidão à escala nacional, os alentejanos são-no por convicção e carácter, por muito que Portalegre seja diferente de Évora e Évora não seja a mesma coisa que Barrancos ou Beja. O que a Internet e as estradas diluíram a batalha contra a distância aproximou. A 2 de Abril deste ano, dezenas de personalidades de todos os cantos da região reuniram-se em Tróia para reivindicar o avanço da regionalização e emitiram uma declaração final na qual se jurava: “É o amor ao Alentejo que nos une e motiva.” Por aí, o Alentejo é ainda uma das regiões do país na qual o termo “regionalismo” não perdeu sentido.

O que perdeu sentido foram as ideias de uma região pasmada com a paisagem. “A educação fez toda a diferença. Temos agora pela primeira vez uma geração inteira de pais e filhos educados”, diz Ana Costa Freitas. Isso muda as perspectivas, mas não altera os comportamentos. “No campo, o modo de estar tradicional mantém-se, resumindo-se às relações mediadas pelas actividades e instituições – Igreja, trabalho, associações de convívio, casa de família – num espaço de convivência mais regrado”, nota Eduardo Jorge Esperança, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Évora. Em certas aldeias, o abandono foi mitigado pela chegada de estrangeiros, principalmente holandeses e alemães, que compram “montes abandonados ou casas em aldeias meio desertas”, diz o sociólogo. Trazem “mudanças lentas, mas, aparentemente, benéficas” e “respeitam a arquitectura e o planeamento tradicional do que existe”, acrescenta. Em alguns lugares, os alentejanos continuam a falar baixo. A ser desconfiados, como nota Henrique Raposo no seu livro. Sequelas de anos de vigilância, da Inquisição, da Igreja, da PIDE.

Na cidade, principalmente em Évora, os estudantes e os turistas animam o quotidiano. Para os habitantes, deixou de fazer sentido ir ao fim-de-semana ao Fórum Montijo, observa Eduardo Esperança. Têm, porém, de se deslocar para ir ao cinema. “Évora não tem hoje uma sala de cinema comercial. A última, no pequeno centro comercial Eborim, encerrou em Março de 2009”, recorda o académico. O espaço foi transformado num hotel.

A sensação de que o Alentejo é um mundo à parte, voltado para si mesmo, está a mudar. “O Alentejo tem de enterrar a ideia de que é uma região fechada em Portugal. Tem de se tornar mais internacional”, diz Augusto Mateus, ex-ministro da Economia e dono de uma empresa de consultoria que fez recentemente um estudo sobre o impacte económico do Alqueva. Ora, “Sines, a Embraer ou o Alqueva são um bom sinal de que isso está a acontecer”. Se fosse um país, o Alentejo tinha hoje uma taxa de cobertura das importações pelas exportações muito positiva. Em 2014 a região exportou bens e serviços no valor de 2,8 mil milhões de euros e só importou 2,2 mil milhões.

Entre a educação, a abertura e a transformação dos latifundiários em empresários agrícolas, também a política mudou. O Alentejo já não é o feudo do PCP de 1975, embora seja uma força política e social de primeira linha. Nas legislativas de 1976, o PCP venceu claramente em Évora e em Beja – Portalegre sempre foi socialista –, mas no ano passado ficou em terceiro lugar em Évora e Portalegre e em segundo em Beja. Se em 1976 os comunistas dominavam 24 das 43 câmaras da região, actualmente mandam ainda em 18.

Dizer que o Alentejo mudou muito é certo, mas é errado dizer que mudou completamente, porque entre os aviões e a água do Alqueva, que numa década alterou o que a aridez cristalizou durante séculos, subsiste o envelhecimento, o Alentejo vasto, nostálgico e esquecido onde a silhueta dos chaparros permanece. Mais do que uma superfície plana, o Alentejo de hoje é um triângulo à procura de um novo equilíbrio.

Os aviões

A reitora da Universidade de Évora, uma agrónoma que foi viver para a cidade em 1975, fala do Alentejo com a paixão de quem defende um clube de futebol. Na cidade, é fácil pressentir um tempo novo. No centro, o turismo explodiu. Na universidade os cursos voltaram a preencher todas as vagas – são ao todo sete mil estudantes, dos quais 678 em doutoramento. Os parques tecnológicos e as incubadoras da universidade, da autarquia ou do NERE, Núcleo Empresarial da Região de Évora, estão repletos. Na zona industrial, o cluster aeronáutico começa a consolidar-se com novos investimentos – Carlos Pinto de Sá, presidente da Câmara de Évora, dizia em Fevereiro ao PÚBLICO que estão em projecto investimentos de 230 milhões de euros que vão criar mais mil postos de trabalho. “O preço da habitação na cidade está tão caro que há cada vez mais pessoas a procurar casa em Montemor ou em Viana do Alentejo”, diz Roberto Grilo. A fábrica da Embraer mudou tudo.

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Fábrica da Embraer, em Évora miguel manso

A vaga dos aviões não se ficou por Évora. Aproveitou o vazio deixado pelo encerramento da fábrica de componentes para automóveis da Delphi, que, em 2009, deixou 439 pessoas sem trabalho, e fixou-se em Ponte de Sor. Por sorte ou por destino, o concelho está fora das rotas do tráfego aéreo comercial, o que levou a autarquia a criar um campus universitário para estudantes de cursos de Aeronáutica. Neste momento estudam lá 200 alunos de várias universidades nacionais e a autarquia espera acolher mais 100 em breve. Mais importante ainda, o campus e o aeródromo tornaram-se a mola que atraiu novos investimentos. A fábrica de drones da Tekever, que custou cinco milhões, está lá. A Helliavionics Lab e a Fly Tech, empresas de manutenção, também. Em Ponte de Sor está também a base dos serviços aéreos da Protecção Civil. Muitos serviços para um concelho com apenas 15.900 habitantes.

Para falar de trunfos da região, o presidente da CCDRA não poupa as palavras e ainda menos os exemplos. O Alentejo, diz, tem o maior lago artificial da Europa, tem um cluster aeronáutico em crescimento, tem o turismo em explosão e tem Sines. O porto que simboliza há meio século o sonho industrial português é um colosso à escala nacional. Em 2014 atracaram lá 1981 barcos que carregaram ou descarregaram 8018 contentores equivalentes a 35 milhões de toneladas. Sines vale hoje 45% do movimento portuário nacional. E é a base para uma série de indústrias de grande dimensão: a Petrogal (refinaria), a Repsol (petroquímica) a Artlant (Petroquímica), Euroresinas (formaldeído e resinas sintéticas) ou a Metalsines (metalomecânica – material ferroviário). Muita indústria num Alentejo litoral onde só há turismo. E que explica o facto de nesta sub-região a riqueza por pessoa (PIB per capita) ser muito maior do que no resto do Alentejo e mesmo acima da média nacional (19.434 euros em 2014, contra 16.282 no país).

Um músculo com este poder é visto pela região como uma força capaz de despertar as zonas adormecidas. O despertador está pensado e projectado: uma linha de caminho-de-ferro que ligará o porto a Caia, junto à fronteira com a Espanha. Quando a obra estiver pronta, fica aberta uma porta à circulação de 24 comboios diários, com 750 metros de comprimento e uma capacidade de carga de 1400 toneladas por comboio. Em Elvas ficará instalado um pólo logístico e Évora terá uma nova ponte para escoar a produção do seu protocluster aeronáutico.

Mas o que é uma oportunidade para a região é também um desafio para a sua coerência territorial. O sucesso de Sines, a abertura de Évora, o caminho-de-ferro e as auto-estradas estão a levar o Alentejo litoral e três concelhos do Alentejo central (Vendas Novas, Montemor e Évora) a aproximar-se da área de influência de Lisboa. O estudo Uma Metrópole para o Atlântico, financiado pela Fundação Gulbenkian e dirigido pelo economista Félix Ribeiro, nota que do ponto de vista do mercado de trabalho ou das relações empresariais e culturais, estas áreas do Alentejo estão hoje a gravitar em torno da capital. O Alentejo partido? Roberto Grilo nega: “Pode haver essa sensação, mas eu não acho que seja real.” Para ele, Évora desempenha uma função de pivot que articula a capital com toda a região. “A cidade será o factor que levará Lisboa a ter uma relação com todo o Alentejo”, acrescenta.

Há poucos anos, na discussão do potencial ou das oportunidades do Alentejo era provável que o aeroporto de Beja entrasse na equação. Hoje, não. Dentro de três anos, pode ser que a instalação de uma unidade de manutenção de aviões seja real, gerando um investimento de oito milhões de euros e a criação de 100 postos de trabalho. Por agora, o aeroporto é uma utopia. As pistas estão a ser usadas pela Hi-Fly e pela Sata, mas o sonho de uma nova Portela na planície gorou-se. “Foi um disparate do ponto de vista de utilização dos recursos”, diz Augusto Mateus.

A água

Uns 80 quilómetros ao sul de Évora, a revolução é ainda maior. Em curso está uma profunda reforma no mundo agrário. Mas, desta vez, o que fomenta a mudança não é a ideologia. É a água. Mais precisamente, 4.500.000.000 m3 de água acumulada numa albufeira que se estende por 25 mil hectares. “O Alqueva é o projecto mais estruturante da região nas últimas gerações”, diz José Pedro Salema, presidente da EDIA, a empresa pública que gere a gigantesca infra-estrutura da barragem e do seu vasto sistema de rega. Augusto Mateus explica as razões da revolução: “A introdução da água na agricultura da região tem o mesmo efeito que a aplicação de novas tecnologias na indústria.” Este ano, o projecto original que previa a irrigação de 120 mil hectares de terras fica concluído. E a apetência por água é tão grande que a EDIA e o Governo têm já estudos que apontam para um acréscimo de mais 12 blocos de rega, um investimento estimado em 154 milhões de euros que levará água a mais 46 mil hectares.

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No troço do IP8 que liga a auto-estrada do Algarve a Beja há uma série de viadutos inacabados, com ferros ferrugentos ao ar em sinal de incerteza e abandono

“Os agricultores pedem-nos que a água chegue às suas explorações”, diz José Pedro Salema. O milagre da água pode alastrar, porque os projectos originais do Alqueva foram ultrapassados pela realidade. “O sistema foi projectado para distribuir 6000m3 de água por hectare/ano e está a distribuir apenas 3000m3. Nós avançámos muito ao nível da eficiência”, diz o presidente da EDIA. Mas, para lá da eficiência, a maior mudança em relação aos planos originais aconteceu com as culturas adoptadas pelos agricultores. Em vez de hortícolas ou de cereais de regadio, a maior parte da água do Alqueva está a ser utilizada nos olivais ou nos amendoais, onde as necessidades de rega são muito menores.

A revolução do Alqueva é visível a olho nu. Em Serpa, em Ferreira do Alentejo, em Cuba ou nas imediações de Beja, as tradicionais searas de trigo praticamente desapareceram. O “celeiro de Portugal”, que, na opinião de Augusto Mateus, foi sinónimo do “Alentejo miserável” de outrora, talvez se possa chamar agora a “azenha de Portugal”. Mais de metade da área onde a água chegou foi reconvertida em olivais que mudaram num só golpe a paisagem, a economia e a ancestral relação dos homens com a terra. No Alentejo, a Sovena tem o maior olival e o melhor lagar de azeite do mundo, o Lagar do Marmelo. No Alentejo só existem 55 mil das 267 mil oliveiras que o INE estima existirem em Portugal, mas com a rega e a ciência essa sexta parte do olival nacional produz dois terços do azeite português.

No Alentejo há agora investidores das grandes cidades ou de Espanha em busca do “eldorado” da agricultura. Alguns, como os empresários Alexandre Relvas ou Henrique Granadeiro, preferem a vinha, que, à sua maneira, foi igualmente alvo de uma profunda transformação – o Alentejo produziu em 2014 quase um terço do vinho nacional e é a região que domina o mercado nacional. A maior fatia do capital, porém, foi transferida para o regadio. Há 20 anos, os cereais dominavam a produção; hoje são um resquício do passado – na campanha de há dois anos, semearam-se apenas 38 mil hectares de trigo nas planícies secas do Sul. Por arrastamento, há centros logísticos que se constroem e empresas do agro-alimentar, como a suíça Fairfruit, que estão prestes a instalar-se em Beja. A agricultura volta a ser moda. “Há dez ou 12 anos não tínhamos ninguém nos cursos de Agricultura. Agora estão outra vez cheios”, nota Ana Costa Freitas.

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"Se não fosse o Alqueva, não teria voltado”, diz o agrónomo Daniel Montes, que saiu de Beja com 17 anos dr

O Alqueva correu melhor do que as melhores expectativas. “O que fizemos no Alqueva foi criar uma nova terra. Foi uma conquista que se fez quase ao deserto”, diz o presidente da EDIA. Daniel Montes sabe disso como poucos. “Como agrónomo penso que há poucos regadios tão interessantes no mundo como este”, diz. É por isso que regressou ao Alentejo. “Saí de Beja aos 17 anos e só voltei quando o Alqueva se tornou uma realidade, há sete anos. Se não fosse o Alqueva, não teria voltado.” O pai, que fazia agricultura tradicional e criava vacas, porcos e floresta, deu-lhe os primeiros seis hectares quando regressou a Beja. Depois foi comprando mais terra: hoje tem 47 hectares, mais os seis cedidos pelo pai. Destes, 27,5 são romãzeiras e 20 hectares de amendoal. Daniel estudou no Instituto Superior de Agronomia e fez estudos de especialização e de mestrado nos Estados Unidos. Para ele, falar de agricultura não dispensa citações do Financial Times, as cotações na bolsa de mercadorias de Chicago, a recomendação do marketing ou os cálculos de produtividade.

Na zona de Quintos, poucos quilómetros a sudeste de Beja, o milagre da água está a começar. Imensos arroteamentos pontuados por cilindros plásticos brancos que protegem as oliveiras jovens vêem-se um pouco por todo o lado. Muitos investidores vieram de fora, mas, aqui, como um pouco por todo o lado, “há também agricultores da terra a investir”, diz Daniel Montes. Muitos têm 30 ou 40 anos, uma realidade nova numa região onde, em média, os agricultores têm 64 anos. As mudanças foram tantas e tão rápidas que ainda deixam estupefactos os habitantes de Quintos. Há quem se sinta “cercado” pelo olival. “Sou contra os olivais. Tenho medo dos produtos químicos e dos desinfectantes que lá põem”, queixa-se Nídia Cataluna, uma funcionária da junta de freguesia local.

Se a mudança não se fez pelo olival, vai fazer-se pela plantação de vinha para a produção de uvas, como no Vale da Rosa, em Ferreira do Alentejo, que na apanha chega a empregar 700 pessoas. Ou de romãzeiras, um fruto que o Norte da Europa considera exótico. Ou de amendoal, a nova árvore da paixão para os que têm água nas suas terras. A seca no vale de San Joaquin, na Califórnia, que produzia mais de dois terços da amêndoa mundial, está a gerar uma enorme euforia no perímetro do Alqueva. Daniel Montes faz uma conta simples que ajuda a perceber porquê: “No ano passado, o quilo de miolo de amêndoa chegou a valer nove euros. Este ano está nos cinco. Ora, um amendoal adulto [com seis ou sete anos de vida] consegue produzir 2000kg de miolo por hectare na zona dos barros de Beja.” Assim, um hectare de amendoal pode render 10 mil euros. Muito mais do que os 1000 a 1200 do olival. Muitíssimo mais do que os 80 ou 100 euros do trigo de sequeiro.

A água, diz José Pedro Salema, multiplica o valor da produção (o chamado VAB) sete ou oito vezes, em média. Mas na agricultura moderna nem sempre o VAB significa emprego. “É como numa fábrica de automóveis”, explica Augusto Mateus. Nídia Cataluna observa que em Quintos não fica nada do olival. “Trabalham lá um ou dois romenos que às vezes passam por aqui e bebem uma cerveja”, diz. No Alentejo, dizem as estatísticas do INE, havia, em 2013, 11.889 trabalhadores agrícolas por conta de outrem. Representavam mais de 10% do emprego na região, o que é muito em termos nacionais. Nos modernos olivais, porém, as máquinas e os automatismos dispensam muita mão-de-obra. “Na fruta fresca, precisamos aí de 100 jornas/ano por hectare. No olival nem um décimo desse valor”, diz Daniel Montes.

Quando o momento das colheitas surge, os empresários preferem contratar trabalhadores asiáticos em vez de alentejanos. “É complicado trabalhar com a mão-de-obra local”, diz Daniel Montes. E por vezes não há mão-de-obra. É aí que a demografia trava o avanço da água ou a descolagem dos aviões e amarra o Alentejo às suas fragilidades. O chaparro domina então a paisagem.

Os chaparros

No dia 8 de Fevereiro passado, o estabelecimento da Lojas Coop no centro de Beja encerrou por “falta de clientes e excesso de dívidas”. A estrela amarela sob fundo vermelho que fazia o logótipo da loja empalideceu. A meio da manhã de um dia de trabalho a atmosfera das ruas de Beja ajuda a perceber as razões do destino das Lojas Coop. Um punhado de idosos numa esquina, um par de jovens numa rua e pouco mais. Isto em Beja. Ainda assim nada que se compare com o vazio das estradas que ligam Sousel a Avis ou o Alvito à Vidigueira. Ou ainda menos com o silêncio quase sepulcral que paira sobre Cuba durante os horários de trabalho. Nesses cantos, percebe-se bem que o drama mortal do Alentejo não acabou. Não há gente.

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Museu da Fundação Eugénio de Almeida. "O Alentejo não está de todo parado”, diz Ana Costa Freitas, reitora da Universidade de Évora enric vives-rubio

Os censos confirmam. O Alentejo real (e não a nova unidade estatística que, para efeitos de obtenção das ajudas europeias, inclui agora a lezíria do Tejo), uma região que ocupa um terço da área total do país, tem hoje menos de meio milhão de habitantes. Há concelhos, como Cuba, que não chegam aos cinco mil. E, numa situação extrema, Barrancos tem menos de 2000 (1739). “Há uma grande capacidade da região para atrair pessoas”, diz a reitora da Universidade de Évora, mas o Alentejo continua a perder população. Apesar dos aviões, apesar da água.

Com a sangria populacional vem o envelhecimento. Por cada 100 jovens, no Alentejo há em média 186,5 idosos. Mas essa é a média, porque em Avis são 300 e em Nisa 379. Dos 489.790 habitantes da região, só 49.300 têm menos de 14 anos. Nas sombras das aldeias ou nas praças centrais das vilas, o Alentejo é incapaz de esconder esta enorme fragilidade. Ao todo, de acordo com o INE, havia em 2014 cerca de 270 mil pensionistas que recebiam um pagamento médio de 4420 euros por ano. Dos 8755 habitantes de Aljustrel em Dezembro de 2014, mais de quatro mil (4016) eram idosos que viviam da reforma.

Só uma ampla rede de protecção consegue dar resposta às necessidades de uma população assim tão frágil. As autarquias lideram essa acção. “São fundamentais para garantir a coesão social”, diz Roberto Grilo. Na prestação de cuidados primários, na criação de lares ou até no investimento na cultura, área na qual as câmaras alentejanas são exemplares – gastam em média 68 euros por habitante, contra a média nacional de 34, de acordo com o INE. Com tanta população idosa é mais difícil acudir a todas as necessidades. Nas povoações mais remotas faltam médicos. Em Gavião havia há dois anos apenas 0,3 médicos por mil habitantes – a média nacional é de 4,5.

O envelhecimento que domina a paisagem dos chaparros é uma condenação, porque alimenta a espiral da desertificação humana – em 2014, nasceram apenas 17 bebés no Alvito e dez em Gavião. E compromete a criação de riqueza. Exceptuando o Alentejo litoral, o rendimento anual por pessoa no Alentejo está abaixo da média nacional. Mas é no Alto Alentejo que a situação é mais dramática. Aqui, cada pessoa recebe uma renda média de 12.322 euros por ano. Menos sete mil do que um habitante de Sines. Menos 10 mil do que um cidadão de Lisboa.

O Alto Alentejo é um problema especial entre os problemas do Alentejo. “É capaz de estar a sofrer um retrocesso”, diz Roberto Grilo. Mas, acrescenta, “falta-lhe uma âncora forte de afirmação”. Com a excepção dos vinhos, de uma ou outra empresa, como a Dardico, que emprega 110 pessoas em Avis, ou das empresas de aeronáutica de Ponte de Sor, não há muito mais para fixar pessoas. Aqui, onde “não houve desenvolvimento urbano nem industrial”, onde a falta de jovens se ilude com “a vida artificial do Instituto Politécnico”, pressente-se “alguma falta de esperança”, diz Rui Cardoso Martins.

Sem água, nem aviões, Portalegre e os municípios do Alto Alentejo continuam à espera de uma luz que, ao menos, permita acreditar que o deserto não passa de uma miragem ocasional. Estão, afinal, na mesma situação que toda a região sentia e vivia há uma década apenas. A água ou os aviões estão localizados em pequenos pontos desta região vasta. Mas, ao menos, existem. São pequenos pontos de luz. E isso, numa região habituada ao lamento e à falta de perspectivas, faz toda a diferença.

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