Este disco (ainda) é um país

É uma das obras-primas da música pop portuguesa, um portento de criatividade e activismo em tempos de ditatura. Álbum genial, álbum esquecido, Quarteto 1111 é agora alvo de uma luxuosa reedição em vinil. O presente reencontra-o.

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António Moniz Pereira, Michel Silveira, José Cid e Mário Rui Terra RUI COELHO DIAS

Talvez os outros passageiros no avião com destino a Frankfurt se tenham questionado ao repararem no homem que, não sem ansiedade, segurava um pacote junto ao peito. Que preciosidade seria aquela que ele não queria, não podia, perder de vista? O passageiro não lhes terá prestado atenção. Era um homem com uma missão a cumprir. Todo ele se concentrava nela.

Miguel Augusto Silva carregava consigo os masters de Quarteto 1111, o álbum homónimo que a banda editou em 1970. Álbum histórico, álbum genial, álbum polémico, álbum misterioso, álbum esquecido. Os masters não saíam dos armazéns da Valentim de Carvalho desde a sua edição há mais de quatro décadas. O fundador da Armoniz, editora especializada em reedições incrivelmente fidedignas em som e arte gráfica de discos do rock português da década de 1960 e 1970 (ver caixa), viajava para a Alemanha para fazer o corte de acetato do segundo lançamento da sua editora. Em 2014, tínhamos reencontrado José Cid, raríssimo álbum a solo criado em 1971. Agora, seria tempo de voltar pôr Quarteto 1111 no sítio certo, ou seja, disponível para além da existência online em links de YouTube.

O que era Quarteto 1111? Resposta múltipla. Um álbum bi-conceptual através do qual se colocava uma lupa sobre a miséria que obrigava portugueses a saltar fronteira para aterrar nos bidonvilles de Paris, e sobre a guerra em África e o racismo que a propaganda estatal disfarçava de luso-tropicalismo. Era, também, um disco de um arrojo absolutamente moderno: um festim de criatividade onde o rhythm’n’blues dos Booker T & The MGs, a folk acústica, as experiências psicadélicas dos Beatles e Pink Floyd ou as vanguardas experimentalistas que usavam o estúdio como um novo instrumento se fundiam com uma identidade portuguesa vincada. Tudo inventado por José Cid, António Moniz Pereira, Michel Silveira, Mário Rui Terra e um grupo de amigos alargado, reunidos numa garagem transformada em estúdio na Alapraia, no Estoril.

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A garagem tornada estúdio onde tudo acontecia PACO AYUSO

Quarteto 1111 é, resposta simples, um disco essencial na história da música portuguesa. Firmemente implantado no seu tempo e aparentemente esquecido no tempo que o gerou. Aparentemente.

Reencontro em marcha

A história subsiste envolta num manto de mistério. O nome Quarteto 1111 é conhecido de todos. São a antiga banda de José Cid, os autores de A Lenda d’El Rei Dom Sebastião. Não é muito. Conhece-se o Quarteto 1111 sem o conhecer verdadeiramente. A luxuosa reedição da Armoniz ajudará ao reencontro. Que, lentamente, subterraneamente, já está em marcha.

Ilídio Marques, gestor de comunicação da gnration, em Braga, melómano empenhado e fundador da Covilhete na Mão, promotora responsável pelos festivais Cellos Rock e Rock Nordeste, aguçou a curiosidade ao ouvir José Cid referir o Quarteto 1111 em várias entrevistas televisivas. “Era um passado da música portuguesa de que não se ouvia falar muito”. Na internet, Ilídio descobriria então “o homónimo do Quarteto, o Cantamos Pessoas Vivas [de 1975], o 10 000 Anos [Depois Entre Vénus e Marte, o álbum de rock sinfónico de Cid, editado em 1978]”.

João Branco Kyron, no cenário musical desde a década de 1990, só encontrou a sério o Quarteto quando das cinzas dos Hipnótica, e de uma vontade de explorar novas linguagens folk psicadélicas, ancoradas no legado das décadas de 1960 e 1970, nasceram os Beautify Junkyards. Através da internet, obviamente. “Coincidiu com o mergulho na música portuguesa do passado que fizemos no início dos Beautify Junkyards. O Zeca [Afonso], a Banda do Casaco, o Quarteto, dos quais só conhecíamos as canções mais famosas, como A Lenda d’El Rei Dom Sebastião’.

Domingos Coimbra é o baixista dos Capitão Fausto, a banda que acaba de editar o seu terceiro longa duração, Têm os Dias Contados. No primeiro álbum, Gazela, encontrávamos uma canção que não deixava dúvidas. Música 9, Zé Cid. Quando nascem os Capitão Fausto, a opção pelo português levou-os a pesquisar. “Fomos levados para os anos 1960 e 1970 e aí surgiram o Conjunto Académico João Paulo, os Sheiks, a Banda do Casaco ou o Quarteto, que acabou por ser aquele com que nos identificámos mais. Soavam mais à frente, em relação às bandas da altura”, defende.

João Carlos Callixto é um investigador atentíssimo da cena portuguesa das décadas de 1960 e 1970, uma história de que vem sendo um dos grandes divulgadores, quer na RTP, quer na RDP, quer através de obras como Canta Amigo Canta – Nova Canção Portuguesa (1960-1974). O estatuto de raridade absurdamente rara de Quarteto 1111 fazia com que a edição original só surgisse em feiras a preços proibitivos – “ainda hoje, quando aparece, é sempre vendido acima de 300 ou 400 euros”, conta. Consequência disso, só ouviu pela primeira vez Quarteto 1111 na totalidade quando da reedição em CD, em 1998. Se já o sabia, deixou de ter dúvidas: “Não sendo o grupo fundador do rock português, porque antes deles já havia uma história de pelo menos seis anos, iniciada com o histórico Caloiros da Canção de Daniel Bacelar e os Conchas (EP de 1960), o Quarteto é o primeiro a misturar elementos do rock internacional com elementos tradicionais portugueses e a construir dessa forma um retrato do país”.

A descoberta conduz inevitavelmente, décadas depois, ao fascínio. Diz João Branco Kyron: “Achei espantosa a actualidade sonora da banda em relação a congéneres inglesas. Um pouco de Incredible String Band, de Fairport Convention, o rock progressivo e um pouco de rhythm’n’blues no órgão, à Alan Price da banda sonora do O Lucky Man”. Aponta Domingos Coimbra: “Sente-se uma diversidade instrumental que não era muito comum, com as flautas, os órgãos, duas baterias nalgumas faixas. E as letras são muito interessantes e reflectem um país com que as pessoas se teriam identificado”. Analisa Ilídio Marques: “Fundem o rock psicadélico com a música tradicional de uma forma inovadora e conseguem ir buscar à mitologia e à literatura a história passada do país, embrulhando-a no seu presente. Só essa ligação é genial”. Quarteto 1111, visto desde 2016. 

Uma garagem, um laboratório

29 de Fevereiro de 2016, Auditório Maestro Frederico de Freitas, sede da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em Lisboa. Dia da apresentação do reeditado Quarteto 1111. Tozé Brito, que substituiu o baixista Mário Rui Terra após a gravação do álbum, quando aquele foi destacado para a Guerra Colonial, fala da “disciplina de trabalho” da banda: “Ensaios todos os dias, com excepção dos dias de concerto”. O centro era a garagem na casa dos pais do baterista Michel Silveira.

Lá fora, um mundo em que as bandas subiam a palco para animar bailes com versões de bandas americanas e inglesas. Tozé Brito, que tocava nos Pop Five Music Incorporated, autores de Page one, funkalhada de boa cepa e uma das grandes canções do período, foi recrutado para o Quarteto nesse contexto. Um concerto em Fafe, o Quarteto e os Pop Five a alternarem em palco – duas horas uma banda, mais duas a outra, e assim noite fora “até às 5, 7 da manhã”. Esse era o mundo lá fora. No núcleo do Quarteto 1111, outras ideias fervilhavam.

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JORGE HIPÓLITO; PACO AYUSO; JORGE HIPÓLITO

A banda que nasceria das cinzas do Conjunto Mistério, modelado nos Shadows, acabaria por se transformar com a chegada, vindo de Coimbra, de um teclista que, nos Babies, andara a tocar o rock’n’roll de Little Richard em salões de chá, e que, depois, no Conjunto Orfeão, juntou o jazz ou a bossa-nova aos seus talentos. O seu nome era José Cid – e sabia o que procurava. “Quando [os membros do futuro Quarteto 1111] ouviram A Lenda d’El Rei Dom Sebastião, não queriam acreditar que tinham ali um músico português a tocar uma canção assim. É o que ainda hoje me contam”, recorda Miguel Augusto Silva. A canção tornou-se um sucesso imediato, mas os Quarteto estavam apenas a começar.

Nascido oficialmente na passagem de ano de 1966/67, o Quarteto 1111 não demora a tornar-se uma verdadeira força criativa, absurdamente abrangente, do rock português. Editam singles e EPs onde as lendas portuguesas se cobrem de folk e orquestrações opulentas (Balada para D. Inês, com que participam no Festival da Canção), criam acidez psicadélica com letra a condizer (Génese), acidez psicadélica com balanço funk (Bissaide) e psicadelismo de olhos postos no Magrebe (Ababilah). Pelo meio, ensaiam sátiras sociais à burguesia auto-alienada (Dona Vitória). Paralelamente, fruto do contrato assinado com a Valentim de Carvalho, onde estava contemplado o acompanhamento de outros nomes da editora, multiplicaram-se em colaborações: desde a fadista Hermínia Silva a José Jorge Letria, de Mário Piçarra a Tonicha, de Filipa Van Uden aos Plexus do violinista Carlos Zíngaro. Junte-se uma ligação privilegiada ao presente da música criada além-fronteiras – Michel Silveira trabalhava na TAP e trazia das suas viagens as mais recentes novidades discográficas – e o cenário fica quase completo. Quase. “Queríamos criar uma obra absolutamente nossa, pessoal, que reflectisse o país. Uma aposta de teimosia, de resistência, alguma inspiração. E depois mais teimosia e mais resistência”, contou José Cid no SPA.

O Quarteto não estava sozinho neste Portugal pop e rock’n’roll que a internet e novas edições, em disco ou em livro, nos vão permitindo redescobrir. Dois exemplos: os Steamers faziam garage-rock em modo sarcasmo zappiano em I am a Chancho e os Filarmónica Fraude, que se transformariam depois na Banda do Casaco, editavam em 1969 o magnífico Epopeia, álbum proto-progressivo em que a saga dos Descobrimentos se redescobre, menos gloriosa, no presente. O que conseguiu o Quarteto no seu álbum de 1970, porém, é único: o pináculo de um percurso iniciado meros três anos antes.

Michel Silveira, José Cid, António Moniz Pereira e Mário Rui Terra, que substituíra Jorge Moniz Pereira, irmão de António, sobrinhos do Prof. Moniz Pereira, o lendário senhor atletismo do Sporting, não estavam sozinhos. Não era por acaso que os próximos da banda falavam de uma Fundação 1111 – porque havia Paco Ayuoso, técnico de som entusiasta da invenção de novos sons, Rui Coelho Dias, o agente que também se ouve no disco (é dele a voz do Prólogo ), Mário Soares e Jorge Hipólito, os produtores de Quarteto 1111, ou Betty Wilkinson, então mulher de Michel e voz presente em várias canções.

José Cid chegava com as mais diversas ideias, António Moniz Pereira, “o esteta do grupo”, tratava da filtragem, e a criatividade desabrochava. Cada canção é uma história em si mesma. No lado A, a brisa folk da impressionante João Nada, o acordeão e a triste melancolia de Domingo em Bidonville, as Trovas do vento que passa "oferecidas" por Adriano Correia de Oliveira e a música concreta de A fuga dos grilos, admirável curta-metragem de uma passagem a salto pela fronteira. No lado B, o hino anti-racista Pigmentação, portento funk colorido a vibrafone, a tocante Maria Negra, denúncia do mesmo flagelo numa narrativa intimista, e essa Lenda da Nambuangongo que é toda ela luz e leveza tropical, tanto quanto é negro e trágico o que fica sugerido – Nambuangongo foi palco sangrento do eclodir da guerra colonial em Angola.

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Mário Rui Terra e Michel Silveira num concerto em 1968 PACO AYUSO

Na gravação ouvem-se guitarras invertidas, sons ambiente registados em Paris para total fidedignidade, manipulação de fita para criar nova sonoplastia, flautas que tinham que ser gravadas num carro, a 50 metros do estúdio, para obter o som pretendido, efeitos estéreo puxados ao limite, fuzz nas guitarras, a contribuição dos vanguardistas dos Plexus e até, arrisquemos, a inspiração de dois músicos brasileiros de passagem por Lisboa a caminho do exílio em Londres – chamavam-se Caetano Veloso e Gilberto Gil, assistiram a um dia de gravações e Gil até deixou a Cid Volkswagen Blue, canção que este registaria no seu álbum a solo de 1971.

Em 2016, Domingos Coimbra falará de Pigmentação como “canção intemporal que podemos transpor para os dias de hoje”, com o negro ali cantado ganhando a companhia do sírio refugiado na Europa. Falará de um disco que não está preso ao seu tempo. “A prova somos nós [Capitão Fausto], que temos 20 e poucos anos e que temos aquela música como referência”. Ilídio Marques conta que, quando ouve Quarteto 1111, cria “uma imagem mental de muitas zonas do país que frequento e que visito e que parecem ilhas neste continente”. E destaca aquilo que vê como um feito raro: “fundir a beleza do som e a pertinência da temática e das palavras no presente”. Acrescenta: “O disco abre com um Prólogo e termina com um Epílogo, o que é totalmente da literatura. Se não fosse um disco, era um livro de histórias”.

Março de 1970. Sexta-feira 13. As 500 cópias de Quarteto 1111 seguem para as lojas. No final de Abril o álbum é censurado e a PIDE encarrega-se de destruir todos os exemplares encontrados. A difusão radiofónica é também impedida. Ainda assim, a revista Mundo da Canção, opositora do regime, publica algumas das letras do álbum (formado por “neo-monárquicos obcecados pela situação política”, como definido por José Cid na SPA, o Quarteto era visto pelo núcleo da canção de protesto “como um dos seus”, refere João Carlos Callixto). Em Março de 1973, a Valentim de Carvalho tenta nova edição. Autorização negada. Dá-se a o 25 de Abril. Quarteto 1111, uma das obras-primas da música portuguesa, vai-se apagando lentamente da memória. Sobra um mito de que alguns ouviram falar e que poucos ouviram. O tempo, porém, começará a fazer-lhe justiça.

Eis uma boa história: desde o nascimento oficial do Quarteto 1111, a 31 de Dezembro de 1966, até à chegada das fitas com o álbum homónimo à Valentim de Carvalho, a 14 de Janeiro de 1970, passaram-se exactamente mil cento e onze dias. Uma curiosidade destas faz bem no mito. Já a música que nele ouvimos é bem real e não precisa de mitificações. Diz tudo o que tem a dizer. Muito claramente e de forma vibrante. Ouvimos o disco reeditado e deslumbramos. Redescobrimos. O 1970 do Quarteto é agora.

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