Cá em baixo está o kitsch indie, lá em cima está um cume de delicadeza

A competição internacional do IndieLisboa vai-se elevando, do artifício das ficções do real até à normalidade de The Family, de Shumin Liu. Cinco horas? Não é uma montanha intransponível.

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Tem quase cinco horas de duração, mas não é uma montanha intransponível, é um cume de delicadeza: The Family
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Dar palco às suas actrizes para elas, olhando-nos nos olhos, mostrarem o que valem: Mate-me por favor
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Concorde-se: é intrigante ver um grupo de homens imobilizados no mar a testar os níveis de masculinidade: Chevalier

Foi com uma melancólica dúvida sobre a capacidade do cinema para dar conta da vida que se iniciou, dia 21, a Competição Internacional do IndieLisboa. Há qualquer coisa de antonioniano nesta dúvida e nesta impotência, porque é disso que se abeira In The Last Days of a City, de Tamer El Said  título que respira requiem por todos os lados, e faz às tantas essa pergunta que fica sem resposta: olhar boicota o viver, quando perseguimos o que filmamos estamos a amputar possibilidades de experiência?

In The Last Days of a City (repete domingo, dia 24, às 21h, Cinema Ideal) é uma espécie de Profissão: Cineasta (por causa do Profissão: Repórter, de Antonioni) de um realizador do Cairo que filma a sua cidade nos últimos dias do regime de Hosni Mubarak e uma personagem – um realizador, claro – que se vai exilando na sua malaise, cada vez com mais dificuldades em não se alienar da cidade e dos seus acontecimentos e em não se refugiar nos seus fantasmas – talvez tenha sido isto que fez Profissão: Repórter, o filme de 1975 com a personagem do jornalista interpretada por Jack Nicholson (foge tanto que desaparece), transformar-se no fantasma deste espectador.

In The Last Days of a City embrulha-se nas dúvidas e nas questões, discute-as em primeiro plano escancarando o programa. Mas é justo dizer que nunca se dissipa a melancolia. Nem se aligeira a densidade. Tendo sido propositado ou não, faz sentido começar este concurso com dúvidas. Pelo menos In The Last Days of a City duvida(-se). É que há títulos por aqui que não fazem pergunta alguma, encostam-se de forma complacente à mediania e aos estereótipos. Constituem a linha da frente de uma zona de conforto, o kitsch indie.

É escolher: Ce Sentiment de l’Eté, de Mikhael Hers (segunda, dia 25, 21h30, Culturgest; 4ª, 27, 19h, Cinema Ideal), que não escapa a nenhum dos acordes da música de “filme sensível” ao contar a história da tentativa de recomeço de várias personagens depois de uma tragédia – estão todos sempre, entre Paris, Nova Iorque ou Berlim, a falar do que lhes acontece ou do que lhes vai acontecer a cada Verão, mas a tagarelice não impede que o filme claudique sempre a cada promessa de recomeço; Baden Baden, de Rachel Lang (sábado, 23, 21h30, Culturgest; domingo, 24, 19h, Cinema Ideal), mostra que a brisa de Verão e as roupas ligeiras são adereços que ficam bem em personagens postas a crescer e a reencontrar-se num filme que vai progressivamente diminuindo; Short Stay, de Ted Fendt (sexta, 29, 19h30, Culturgest; sábado, 30, 18h, Cinema Ideal), é um embaraço, mal consegue murmurar a palavra “cinema”, aqui um som indistinto, algo em estado larvar.

É melhor, nesta altura, iniciar-se o percurso ascendente. Atenção: começam aqui os títulos mais badalados do concurso, com credenciais hiperbolizadas a partir de anteriores festivais. E no entanto... Olmo e a Gaivota, de Petra Costa e Lea Glob (quarta, 27, 21h30, Culturgest; sexta, 29, 19h, São Jorge), instala-se como se descobrisse a pólvora no território do teatro e da intimidade, da contabilidade conjugal e das exigências do palco, da ficção e do documentário: Olivia Corsini é actriz, vai fazer A Gaivota, de Tchékhov, descobre-se grávida, Serge Nicolai é o seu companheiro, e serão os dois uma versão de si próprios no filme. Entre a ingenuidade e a pretensão, porque “O teatro e a vida!” é gritado como se não tivesse havido Bergman, Cassavetes, Rivette..., é, juntamente com Bella e Perduta, de Pietro Marcello (o filme que abriu o último DocLisboa), um dos objectos mais sobrevalorizados das últimas saisons. Estiveram ambos no Festival de Locarno, onde também esteve outro dos participantes deste concurso, Chevalier, de Athina Rachel Tsangari (segunda, 25, 19h, e quinta, 28, 22h15, Cinema Ideal).

Concorde-se: é intrigante ver um grupo de homens imobilizados no mar a testar os níveis de masculinidade, medindo pilas, erecções e pneus, atribuindo-se características de ananás ou de panda (como se desse jogo dependesse a vida), fazendo playback do Loving you, de Minnie Ripperton, investigando os corpos como numa autópsia. Buñuel (O Anjo Exterminador) e Skolimoski (O Navio-Farol) dão à costa, da nossa memória, através do filme de Athina. Mas falta a Chevalier tocar o trágico e o fantasmagórico, dimensões que escapam aqui, como se tudo se resumisse a baralhar para apenas voltar a alinhar as cores de um Cubo Mágico (não é figura de estilo, está no filme). Será interessante compará-lo com Lobster, de Yorgos Lanthimos (um cúmplice de Athina), filme (da secção Boca do Inferno) que nasceu também de uma série de situações que foram elencadas, imaginadas, mas não se fica pelo inventário mais ou menos bizarro, fazendo reverter tudo para os actores, implicando-os numa renovada energia de invenção de gramática interpretativa que os despe das convenções que ajudam a erguer personagens. Chevalier não chega aí.

Há uma actriz em busca de personagem em Kate Plays Christine, de Robert Greene (quinta, 28, 21h30, Culturgest; sexta, 29, 22h15, Cinema Ideal). Kate é Kate Lyn Sheil, Christine era Christine Chubbuck, apresentadora de TV, depressiva, que se suicidou em directo no seu programa, em 1974, apontando o revólver à cabeça depois de declarar que, para estar à altura da fasquia de “sangue e tripas” do canal televisivo, aí estava, a cores, um suicídio. Há um problema com Kate Plays Christine: é que o que sabemos dela  o caso foi esquecido, tratado na imprensa na altura com a dimensão de acontecimento local, as imagens desapareceram, ficaram na posse da família (imagine-se se tivesse sido hoje...)  mantém-se uma incógnita. Transfere-se o peso para a pesquisa da actriz, mas conferindo-se à empresa um desagradável toque exibicionista, a rodar sobre o vazio do seu espectáculo, e um certo odor a demagogia. Dá vontade é de ir a correr ver Network, de Sidney Lumet (1976), filme escrito por Paddy Chayefsky que se terá inspirado no “caso” para construir a personagem de Peter Finch que ameaça suicidar-se “on air” (uma outra versão diz que o argumento estava escrito, e foi apenas sombria coincidência). Ou então teremos de esperar pela versão ficcionada de Antonio Campos (o realizador de Afterschool), Christine.

Por falar em Campos, depois da sua estreia na longa, depois do Martha Marcy May Marlene de Sean Durkin, é a vez do terceiro rapaz da Borderline Pictures, Josh Mond, que produziu os filmes dos colegas, se estrear na longa com James White (sexta, 29, 21h30, Culturgest; sábado, 30, 21h45, São Jorge). É um falhanço pelas mesmas razões que fizeram fracassar a segunda longa de Campos, Simon Killer (2012): sendo um filme sobre uma personagem com percepção flutuante, de consistência emocional tão débil como o papel, só aparentemente parece arriscar pela turbulência, quando na verdade nunca sai do sofá seguro da autocondescendência. Será tudo, serão todos, auto-retratos dos homens-rapazes da Borderline Pictures?

Is that all there is?, como cantava a outra? Não. Há os home movies de Vladimir Tomic, quando, adolescente, foi um refugiado da guerra da Bósnia-Herzegovina com asilo num barco ancorado num canal de Copenhaga. Constroem um “era uma vez a Jugoslávia” como se fosse um autêntico falso filme de Emir Kusturica  não querendo Flotel Europa (terça, 26, 19h, Culturgest; quinta, 28, 18h, Cinema Ideal) ser nada disso, tão só a evocação, pícara e triste, de uma aventura individual, pessoal.

E depois, sempre a subir, há Mate-me por Favor, de Anita Rocha da Silveira (sábado, 23, 18h, Culturgest; segunda, 25, 21h, Cinema Ideal), um filme que canta e dança com a excitação e a efabulação das suas adolescentes perante um crime num baldio do Bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. O filme não se limita a filmar o sangue, sangra com elas. E faz algo de mais delicado: sendo tão artificioso, tão encantado pelas possibilidades de preencher os baldios com as cores da ficção, suspende-se a espaços, como se quisesse falar da relação e da aprendizagem com as suas actrizes, dando-lhes palco para elas, olhando-nos nos olhos, mostrarem o que valem – elas que viram filmes de Lynch, viram o Carrie, de Brian de Palma...

E agora, no cume: The Family, de Shumin Liu (domingo, 24, 14h30, São Jorge; sábado, 30, 15h, Museu do Oriente): é a história de uma família chinesa, três gerações, avós, filhos, netos, uma família “normal”, que persegue a sua integração na normalidade. É um filme sobre negociações e abdicações, construído à volta de refeições, onde todos se juntam, mas onde, de forma inelutável, todos já se afastaram. É um filme sobre a memória. Sobre como a conquista da vida normal, aceder a ela, se faz à custa da rasura, do esquecimento. É comoventemente universal, de uma simplicidade que o torna evidente (no entanto, só a formação do cast, actores não profissionais que impregnaram com as suas vidas as vidas das personagens, foi uma proeza), Tem quase cinco horas de duração, mas não é uma montanha intransponível, é um cume de delicadeza.

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