Liberdade de imprensa ou a prática de um crime?

As intenções são, porventura, nobres, mas a conduta é criminosa.

“A liberdade de imprensa implica: b) O direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação” (...).

“São ainda deveres dos jornalistas: f) Não recolher imagens e sons com o recurso a meios não autorizados” (...).

“É permitida aos órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de atos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral. Não é, porém, autorizada, sob pena de desobediência simples: b) A transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer ato processual” (...).

“O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de: b) Divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação”.

“não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser”.

“Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de ato de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos” (...).

Por outras palavras, e procurando simplificar esta panóplia normativa:

A reprodução em meios de comunicação social das escutas realizadas em qualquer processo, bem como dos interrogatórios realizados em qualquer inquérito-crime, constitui a prática de uma conduta proibida, ilegal, ilícita e criminosa. São a Constituição e a Lei que o dizem. Há, no entanto, quem pareça não o querer reconhecer.

Por força do acaso, no mesmo dia em que é publicado uma Directiva Comunitária “relativa ao reforço de certos aspectos da presunção de inocência”, o director de um órgão de comunicação social concedeu uma entrevista a um outro órgão, sendo-lhe colocadas, entre outras, algumas questões a propósito da divulgação de actos processuais, como escutas e interrogatórios, de um mediático processo ainda em investigação.

Nessa entrevista, quando lhe é directamente perguntado se tal prática não configura um crime, ao invés de afirmar imediatamente que sim – como julgo que deveria, pela responsabilidade (acrescida) que tem enquanto jornalista, a menos que as respostas dadas configurem o exercício do seu direito a não se auto-incriminar –, indirectamente responde que não, qualificando essa prática como um “exercício de contraditório”, ao mesmo tempo que afirma um dever de apresentar à “opinião pública” os “indícios que descobrir” dos crimes em investigação.

Ora, enquanto Advogado e jurista, tenho também os deveres de promover a defesa do Estado de Direito, de contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e pugnar pela boa aplicação e interpretação das leis.

Deveres que me impõem procurar irradiar asserções que, do ponto de vista estritamente jurídico, são ostensivamente erradas.

Um médico, ainda que pretenda prevenir ou tratar determinada patologia num paciente, realizar uma intervenção em violação das leges artis e, desse modo, criar perigo para vida ou integridade física do seu paciente, pratica um crime. As intenções são nobres, mas a conduta é criminosa.

Um jornalista, ainda que pretenda exercer um contraditório e apresentar à opinião pública os indícios que descobrir dos crimes em investigação, divulgar escutas telefónicas (sem o consentimento de quem é escutado) e interrogatórios judiciais de inquéritos-crime em segredo de justiça, pratica um crime. As intenções são, porventura, nobres, mas a conduta é criminosa.

“O segredo de justiça é um conceito contra-natura para o jornalista”, disse o mesmo entrevistado em tempos. E disse-o embandeirando um ideal democrático ocidental.

Portugal, porém, antes de ser uma democracia ocidental – que é, efectivamente – é uma República baseada na dignidade da pessoa humana. Antes, não depois. Primeiro a pessoa e a sua dignidade intrínseca, depois a democracia, onde todas as dignidades se inter-relacionam. E o segredo de justiça também protege essas dignidades, mesmo quando a natureza lute contra.

Advogado de PLMJ Penal

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