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Quer a contratação quer a não contratação de Lacerda Machado levantam uma série de dúvidas legítimas

Se António Costa de hoje se sentasse com António Costa de há um ano para discutirem o regime das incompatibilidades em funções públicas, muito provavelmente eram capazes de andar às turras. Há um ano, o então líder do PS, numa entrevista ao PÚBLICO, mostrava-se contra a opção de o Estado ir buscar fora da administração pública pessoas para negociarem os grandes contratos públicos. Porquê? Porque, segundo António Costa de há um ano, isso “fragiliza a protecção do interesse público e torna aqueles que servem momentaneamente o Estado mais permeáveis à influência, normal, da actividade que desenvolvem noutras circunstâncias para os seus clientes privados”.

Um ano volvido, António Costa vai buscar “o seu melhor amigo” Diogo Lacerda Machado, para negociar, em nome do Estado, a reversão da privatização parcial da TAP e servir de intermediário nas negociações entre o La Caixa e Isabel dos Santos, no caso BPI, e entre as autoridades e os ditos lesados, no caso BES. Ainda por cima, este superministro-sombra esteve este tempo todo a negociar em nome de todos nós sem sequer ter um contrato com o Estado. É caso para o António Costa de há um ano abanar a cabeça com um ar de desilusão.

Na entrevista que deu ao PÚBLICO há um ano, António Costa até dava um exemplo: “Um motorista, teoricamente, não tem de ser um funcionário do Estado. Mas os técnicos que apreciam o contrato de uma concessão de uma auto-estrada, aí, isso tem todas as vantagens que não estejam momentaneamente a trabalhar para o Estado [mas sim que trabalhem em permanência para o Estado]. Por mais sérios que sejam, é uma questão de princípio.”

Ora é precisamente este princípio que o António Costa de agora aparentemente está a violar ao ir buscar o seu “melhor amigo” para negociar grandes contratos do Estado. O primeiro-ministro se calhar tem razão quando diz que a um motorista basta-lhe saber os caminhos e o código da estrada. Depois é acelerar, travar e meter a embraiagem. Se de manhã trabalhar para o Estado e à tarde fizer uns biscates para o sector privado, também não virá grande mal ao mundo. Mas um técnico que aprecia um contrato de uma concessão de uma auto-estrada ou um advogado que negocia com os accionistas da TAP em nome do Estado se calhar deveria trabalhar em exclusivo para o Estado para não haver confusões entre negócios e política.

Já se sabe, porque Costa o disse, que Diogo Lacerda Machado não quis ir para o Governo. Mas não haverá entre os 17 ministros, os 41 secretários de Estado, os não sei quantos assessores e adjuntos ou entre os 650 mil funcionários públicos alguém com competência para representar o Estado nessas negociações?

Lacerda Machado, administrador da Geocapital, por ter estado envolvido no negócio entre a TAP e a VEM, que além de ter sido ruinoso para a transportadora aérea está a ser investigado pela PGR, não devia ter aceitado representar o Estado no processo de reversão da privatização da companhia aérea. E, sendo actualmente administrador de uma empresa cujo dono (o empresário de casinos Stanley Ho) tem negócios com os chineses da HNA (sócios da Azul, accionista de referência da TAP), António Costa não o deveria ter convidado para representar o Estado. E sendo advogado de uma firma privada (a BAS – Sociedade de advogados) que factura milhares de euros em contratos públicos, o bom senso aconselhava a que Lacerda Machado não trabalhasse em nome do Estado. Ou, ao invés, que largasse as suas funções de empresário e de advogado no privado e passasse a trabalhar para o Governo ou para a administração pública. Ficar no limbo, a meio caminho, só adensa dúvidas, desconfiança e suspeitas, se calhar até bastante injustas para com Lacerda Machado, de uma promiscuidade pouco saudável entre política e negócios.

O caso Lacerda Machado, tal como António Costa alertava há um ano, levanta a questão pertinente de o Estado não estar a ser capaz de atrair os melhores quadros para trabalharem na administração pública. Isso deve-se essencialmente a dois factores que até hoje nenhum político teve a coragem de encarar. Primeiro, os funcionários públicos mais qualificados são mal pagos comparativamente aos do privado. De acordo com um estudo de 2013 da consultora Mercer, encomendado pelo anterior Governo a pedido da troika, as remunerações no privado nas funções mais qualificadas excedem em 30% o valor que é pago pelo Estado, sendo que o estudo nem sequer contabiliza a componente variável dos salários, que é bastante mais expressiva no sector privado. Mas quem tem coragem política para isto?

Em segundo lugar, os mais qualificados sabem que quando são convidados para trabalhar para o Estado entram num mundo em que muitas vezes as simpatias e a filiação partidária contam mais do que a competência. Ainda ontem, o Governo anunciou que vai afastar a responsável pela Direcção-Geral para a Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (INA) que tinha sido escolhida no anterior governo em 2014 para uma comissão de serviço de cinco anos, através de um concurso da Cresap, com a “necessidade de imprimir nova orientação à gestão dos serviços”. Desde que este Governo tomou posse, já vários dirigentes públicos (a maioria dos quais tinha sido escolhida em concursos da Cresap) foram afastados – além do INA, o IEFP, centros de emprego e até do Instituto de Informática da Segurança Social – quase sempre com este argumento de “imprimir uma nova orientação à gestão dos serviços”. Infelizmente, não é uma coisa só do PS. O PSD e o CDS também fizeram o mesmo quando lá estiveram e não deixou de ser vergonhoso. Depois admirem-se que os melhores só trabalhem para o Estado por amizade.

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