Um longo adeus

É a história de um luto, de um longo adeus: a uma viúva, a muito delicada e sofredora Eri Fukatsu, volta subitamente o marido morto há três anos. Ou o espírito dele, em materialização “realista” de carne e osso.

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Não há sininhos nem flous a indicar a presença do sobrenatural, e Kurosawa mantém tudo num registo tão real quanto possível

Primeiro filme do japonês Kyoshi Kurosawa a chegar ao circuito comercial português (o mais próximo disso tinha sido a edição em DVD de Sonata de Tóquio, um dos seus melhores filmes), Rumo à Outra Margem até será um dos filmes menos típicos do autor – que, já agora diga-se, não tem qualquer parentesco com o muito mais célebre Akira. Os seus filmes costumam instalar-se na fronteira entre o policial e o filme de terror, conciliando elementos dos dois de forma a abalar tanto o realismo como as convenções dos géneros, cujo tratamento sempre pouco ortodoxo acaba por ser a marca mais singular de Kurosawa. Aqui, sem que no fim de contas nos afastamentos extraordinariamente desses predicados, estamos num território um pouco diferente, algo a que chamaríamos uma fantasia melodramática, com um tratamento do romantismo sobrenatural que não deixa de estabelecer pontes quer com tradições japonesas (Os Contos da Lua Vaga de Mizoguchi) quer com tradições do cinema americano (do Ghost and Mrs Muir de Mankiewicz a certas coisas de Shyamalan).

É basicamente a história de um luto, de um longo adeus: a uma viúva, a muito delicada e sofredora Eri Fukatsu, volta subitamente o marido morto há três anos. Ou o espírito dele, em materialização “realista” de carne e osso. É para levar à letra e não é. À letra, porque não há sininhos nem “flous” a indicar a presença do sobrenatural, e Kurosawa mantém tudo num registo tão real quanto possível, completo com cenas mundanas e corriqueiras em lugares mundanos e corriqueiros, como os apartamentos, as  ruas da cidade ou os bosques em redor. E não é para levar a letra porque o filme, mantendo sempre a sua proximidade, o seu vínculo, com a personagem da mulher, trata tudo – assumindo à cabeça a “irrealidade” da situação – como um grande processo mental, uma viagem e um diálogo interiores, um ajustar de contas com uma relação perdida. A ausência de frissons, a delicadeza linear em que Kurosawa concentra a sua narrativa, tem sido criticada – afinal de contas, efectivamente, todos os dados estão definidos à partida, e nenhum twist espectacular está para a acontecer. Mas essa delicadeza, que inclui o retrato da personagem feminina a lidar com a sua perda, é duma fragilidade que faz todo o sentido, porque é o reflexo perfeito do estado emocionalmente periclitante da mulher. “Há outros lugares mais bonitos do que este”, é uma frase que se ouve mais do que uma vez, da boca do marido defunto. Quando, na cena que precede o final, ela lhe pergunta “mas tens mesmo que ir?”, há ali uma graça e uma tristeza que são comoventes – o adeus pode ser longo mas “tem mesmo” que ser. 

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