O mais recente cessar-fogo no Iémen arrisca-se a viver poucas horas

A trégua devia permitir a entrega urgente de apoio humanitário e preparar as próximas negociações de paz, mas só se está a sentir nas cidades longe da linha da frente. Há mais de seis milhões de pessoas a passar fome no país.

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Tropas leais ao Governo exilado em Nehm, perto da capital Sanaa. Nabil Hassan/AFP

A mais recente experiência de cessar-fogo no Iémen estava em risco de ruir ao início da tarde desta segunda-feira, poucas horas depois de ter começado. As cidades longe da linha da frente estavam ainda relativamente calmas, apesar de algumas provocações de lado-a-lado, mas rebeldes xiitas huthis e forças leais ao Governo no exílio prosseguiam os combates em várias localidades estratégicas. A coligação de países do Golfo liderada pela Arábia Saudita fez já quase dez bombardeamentos só nesta segunda, mas nenhum dos lados declarou por enquanto o fracassar da trégua.

O cessar-fogo foi negociado entre rebeldes e Governo como pano de fundo para o recomeço das negociações de paz, agendadas para a próxima segunda-feira, no Kuwait. Entrou oficialmente em vigor às 21h locais de domingo. A noite passou sem grandes incidentes em quase todo o país, mas em Taiz, cidade estratégica no Sul, os combates recomeçaram ainda durante a madrugada. Ao início da tarde desta segunda registavam-se já confrontos em pelo menos cinco províncias e avistavam-se caças sauditas sobre a capital Sanaa, em operações que pareciam ser alertas aos rebeldes. 

A trégua vinha sendo encarada com cepticismo pela parte de vários observadores, que alertam que um acordo selado apenas entre huthis, Governo e seus aliados no Golfo não basta para agradar a todas as facções do conflito. Apesar dos atropelos desta segunda-feira, o executivo iemenita no exílio dizia-se ainda optimista. “A trégua está nos seus primeiros momentos, podem acontecer violações no início, mas espero que as próximas horas tragam disciplina a favor do cessar-fogo”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Abdel Malek al-Mekhlafi.

Mais do que uma trégua nos combates e bombardeamentos, o cessar-fogo pretende abrir canais de apoio a zonas de difícil acesso e aliviar o desastre humanitário no país em que as Nações Unidas dizem que mais de 80% da população precisa de alguma espécie de assistência humanitária. A organização humanitária Oxfam revelou no final de Março que mais de seis milhões de pessoas no Iémen estão em estado de inanição. Já a ONU diz que mais de 14 milhões de pessoas não têm comida suficiente, quase 20 milhões não têm acesso a água potável e cerca de 14 milhões não conseguem assistência médica adequada. Há 2,7 milhões de deslocados dentro e fora do país.

O Iémen passou os últimos dez anos embrenhado em complexos confrontos internos, que opuseram secessionistas do Sul, rebeldes huthis de confissão xiita no Norte, tribos sunitas e uma poderosa força de jihadistas da Al-Qaeda na Península Arábica, no Leste — parte destas forças estão presentes nos combates de hoje. A mais recente encarnação da guerra civil explodiu em Fevereiro de 2015, quando a capital Sanaa foi conquistada ao Exército iemenita pelos rebeldes huthis, que há muito se queixam de marginalização.

Combatentes leais ao veterano ex-Presidente Abdullah Saleh aliaram-se aos rebeldes na sua marcha vitoriosa em direcção a Aden, a cidade portuária no extremo Sul do país onde se refugiara o Governo reconhecido internacionalmente do Presidente Mansour Hadi. Espicaçada pela ideia do ressurgimento regional do Irão, a Arábia Saudita construiu uma aliança de oito países no Golfo para apoiar os vestígios do Exército iemenita leal a Hadi, entretanto refugiado na capital saudita — os huthis recebem algum apoio iraniano, mas a coligação saudita exagera muitas vezes o envolvimento de Teerão no conflito.

A coligação árabe começou a sua campanha no Iémen com bombardeamentos, mas avançou meses mais tarde com milhares de soldados no terreno. Afastou os huthis de Aden e conseguiu escorraçá-los até Taiz, onde esta segunda-feira se davam os combates mais violentos. Os bombardeamentos sauditas aumentaram drasticamente o número de mortos e as últimas tentativas de cessar-fogo não sobreviveram mais do que alguns dias. Morreram já seis mil pessoas no conflito do Iémen. Quase metade são civis e a maioria morreu em ataques aéreos. Perto de um milhar eram crianças: de acordo com um relatório publicado há dias pela UNICEF, pelo menos uma criança iemenita morre ou é mutilada todos os dias.

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