Um monumento a Stravinsky

Stravinsky será sempre Stravinsky, genial e perenemente. Esta caixa, que lhe faz justiça como nenhuma outra edição discográfica, é imprescindível.

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Ugor Stravinsky (1882-1971) foi a figura cimeira da música do século XX ERICH AUERBACH © HULTON-DEUTSCH COLLECTION/CORBIS

Igor Stravinsky (1882-1971) foi a figura cimeira da música do século XX e um dos mais geniais compositores da história da música da tradição erudita europeia.

Claro que houve outros autores proeminentes, desde logo Arnold Schönberg – e a polaridade Stravinsky-Schönberg, senão mesmo rivalidade, é fundamental à compreensão dos percursos composicionais e estilísticos do século passado, até ao presente. Schönberg, na sua formulação do método da série dodecafónica, foi mais influente na segunda metade do século e derivas subsequentes, menos por ele directamente que por via do seu discípulo Anton Webern, tomado como modelo pela “vanguarda” do 2º pós-guerra, cujas sequelas, mesmo na superação do dogmatismo integralmente serialista dos anos 50, abriram o campo do que continuamos a reconhecer como “música contemporânea”. Mas Stravinsky foi a figura proteiforme e incrivelmente inventiva que se ergueu como o monumento incomparável da música novecentista.

Os dois, Stravinsky e Schönberg, evitaram-se mesmo quando, durante a II Guerra, vivem perto em Los Angeles. Mas quando o segundo morreu, o outro foi ao velório e lamentou-se à viúva, “Agora estou sozinho”. Era uma solidão densamente povoada, diga-se, tanto foram os epígonos e aqueles de um modo ou outro por ele influenciados.

Na Poética da Música Stravinsky fez em particular duas declarações de princípio, o seu credo artístico: que a “música é incapaz de exprimir qualquer sentimento” e que não havia “interpretação” mas sim “execução objectiva” do texto da partitura.

Por outro lado, e embora tenha havido outros casos mais pontuais de registo fonográfico por parte dos próprios compositores (casos de Ravel, Rachmaninov, Prokofiev ou Bartók) ele foi o primeiro, desde os anos 30, a amplamente gravar, deixando um corpus muito considerável. Stravinsky por Stravinsky, na fidelidade escrupulosa da “execução” musical, tornou-se o paradigma de um equívoco lugar-comum, muito recorrente, o de que não haverá mais “fiel intérprete” que o próprio autor. Sucede que o seu legado discográfico é tão extenso que nos deparamos com “interpretações” (sim, “interpretações”) claramente diferenciadas de várias obras, desde logo a emblemática Sagração da Primavera. Confirmando-se assim pela própria prática do seu contraditor que existem muito diferentes interpretações, mais se justifica e de algum modo legitima panóplia imensa de abordagens de obras de Stravinsky por outros.

De qualquer modo Stravinsky por Stravinsky é um marco, até agora corporizado numa caixa de 22 cds na Sony, Works of Igor Stravinsky. Sucede que a mesma Sony acaba de editar a compilação integral de todos os registos no catálogo da etiqueta que o compositor dirigiu, Stravinsky – The Complete Columbia Collection de 55 cds (!) mais dvd e livro.

Só que, por coincidência em simultâneo, a Deutsche Grammophon põe no mercado um empreendimento inédito, absolutamente colossal, um monumento, Stravinsky – Complete Edition, com a integralidade das obras do autor.

Como explica o responsável da produção, Roger Wright, este foi um ptojecto longamente planeado, e que só foi possível porque ao longo dos anos o catálogo stravinskiano da DG se reforçou consideravelmente com a chegada de Pierre Boulez e também por discos dirigidos por Oliver Knussen. Mesmo assim não era suficiente, e a DG foi buscar gravações não só à prima e concorrente do grupo Universal, a Decca, como inclusive à Naxos, para onde muito gravou o recentemente desaparecido Robert Craft, que desde princípios dos anos 50 foi a pessoa mais próxima de Stravinsky – tanto que mesmo as últimas gravações para a Columbia são Robert Craft conducts under the supervision of Igor Stravinsky – e também a mais influente, que lhe deu a conhecer Webern, o compositor encetando então o seu último período, dodecafónico.

Importa aliás considerar à tripartição do percurso de Stravinsky nos períodos russo, neo-clássico e dodecafónico. Acontece que de alguma forma ele sempre foi “neo”, neo-russo, neo-clássico, neo-dodecafónico, mas o prefixo, ao contrário do usual, não supõe epigonismo ou pastiche (excepto no caso de Pulcinella, que deu inicio ao período neo-clássico, mas no caso isso é um statement, e na ópera The Rake’s Progress, que de algum modo encerra esse período, e é claramente um “regresso a Mozart”, mesmo assim com aspectos rítmicos acentuadamente idiossincráticos) mas uma permanente reinvenção. Stravinsky foi um génio, e dos maiores, e que obra sua não é puramente genial ou, pelo menos, com um toque de génio? Isso, que é imenso, Stravinsky – Complete Works faz-nos perceber como nunca tinha sucedido.

Não há que pretender ou buscar uma antologia exponencial das interpretações stravinskianas, compilação que cabe fazer a cada um, ao melómano rendido ao génio. É evidente que esta extraordinária caixa não dispensa outros discos, por vezes até com os mesmos intérpretes, como sucede no caso emblemático da Sagração da Primavera, em que a grande referência é a primeira gravação de Boulez na Sony mais do que esta na DG (e são ambas com a Orquestra de Cleveland).

Quanto muito cabe ao crítico assinalar e discutir as escolhas dentro do próprio catálogo DG. Há discos isolados que foram integralmente incluídos mas, surpresa, do de Boulez com a Sinfonia para Instrumentos de Sopro, a Sinfonia dos Salmos e a Sinfonia em Três Andamentos, só a 1ª foi incluídas, da 2ª havendo uma leitura de Gardiner e da 3ªde Bernstein.

Há referências incontornáveis como a maravilhosa Pulcinella de Abbado, os Três Movimentos de Petruchka por Pollini ou Les Noces (veja-se só o luxo: o quarteto de pianistas é Argerich, zimerman, Katsaris e Francesch!) e a Missa por Bernstein, há grandes surpresas, ou interpretações que não nos ocorreriam de imediato, como Jeu de Cartes por Abbado, Apollon musagète por Chailly e até Agon por Ashkenazy. Decepção, buraco negro, só mesmo o Oedipus Rex por Levine, para mais com uma Jocasta de fugir.

Como se não bastasse o contínuo encantatório (diga-se que a audição se torna compulsiva) de 27 cds organizados por obras cénicas, orquestrais, corais. vocais a solo, de câmara e pianísticas, ainda há mais três outros de gravações históricas, tão seminais como Petruchka e A História do Soldado (narrada por Jean Cocteau) por Ansermet e A Sagração da Primavera por Monteux com a Orchestre du Conservatoire (há vários registos desse maestro, que dirigiu a estreia tumultuosa da obra).

Stravinsky será sempre Stravinsky, genial e perenemente. Esta caixa, que lhe faz justiça como nenhuma outra edição discográfica, é imprescindível.

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