Chamar “autista” a alguém pode ser ofensivo para quem sofre mesmo de autismo?

Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo do Douro denunciou o que considerou serem referências depreciativas ao autismo, em duas telenovelas. Mas a Entidade Reguladora da Comunicação Social entende que o uso da palavra “autista” não é ofensivo.

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A APPDA sente que "a palavra está na moda". Manuel Roberto

São duas frases, de duas telenovelas. A primeira é esta: “É a mesma coisa que falar com um autista.” Foi usada para descrever uma jovem que não queria conversar com o ex-namorado. A segunda é esta: “Eu confesso. Eu aproveitei-me da ingenuidade do Cristóvão para ele ajudar-me a controlar-te. Assim eu ficava a saber onde andavas... porque eu lhe disse que eras autista. Sim, porque ele assim podia-me ajudar, porque eu disse-lhe que tu não sabias tomar conta de ti sozinho.” É proferida por uma personagem que explica ao namorado com quem acaba de reconciliar-se a estratégia que usou para se reaproximar dele.

Estas duas frases, respectivamente das telenovelas A Única Mulher e Mulheres, ambas da TVI, motivaram Sónia Maria Exposto a apresentar uma queixa junto da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC). A presidente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo do Douro considera que “foram feitas referências ao autismo de forma depreciativa”, lê-se na deliberação da Entidade Reguladora sobre a queixa.

Sónia Maria Exposto refere que a doença já não é designada como “autismo”, antes como “perturbação do espectro do autismo”, por englobar indivíduos “com níveis elevados de funcionalidade e inteligência que não se compadecem com aquilo que tentaram transmitir na novela”.

Na sua deliberação, a ERC começa por lembrar que, por se tratar de ficção, não cabe a esta entidade apreciar o “rigor da informação” prestada, já que “tal obrigação cinge-se aos conteúdos de natureza informativa”.

Contudo, continua a ERC, cabe-lhe verificar se o disposto na lei em matéria de liberdade de programação foi cumprido e se os limites da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido foram cumpridos. “Tais limites coincidem com direitos constitucionalmente consagrados, como sejam a dignidade da pessoa humana, direitos, liberdades e garantias fundamentais, a proibição de incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela deficiência.”

Assim sendo, a ERC considera que no primeiro caso, na frase usada na novela A Única Mulher, a palavra “autista” assume “um valor coloquial” ao ilustrar uma situação de “falta de comunicação” e, no segundo caso, da novela Mulheres, é uma “situação de falta de autonomia” que despoleta “uma estratégia de aproximação”.

Ou seja, considera esta entidade, a palavra “autista” visa “apenas descrever/caracterizar o comportamento das personagens identificadas e não ofender quem tenha autismo”.

"Realçando-se que as personagens objecto de tais referências não sofrem de autismo, conclui-se que não foram violados os limites à liberdade de programação previstos nas disposições legais aplicáveis", resume.

“É como se a palavra estivesse na moda”

Consta desta deliberação que a TVI foi notificada pela ERC para que se pudesse pronunciar, mas a resposta recebida ao ofício não apresentou “quaisquer esclarecimentos sobre o conteúdo identificado, limitando-se a referir que a ERC não indicou as disposições legais ao abrigo das quais solicitava que o operador se pronunciasse”.

Ao PÚBLICO, a TVI assegurou que “procura sempre assegurar que a sua programação respeite os limites legais aplicáveis”, e que o canal está convicto de que “os episódios das novelas que motivaram a queixa os respeitaram integralmente, tal como foi reconhecido pela ERC”.

Para Ana Maria Gonçalves, vice-presidente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo do Douro, a utilização das expressões “autista” e “autismo” “desta forma tão banal” pode ser “limitativa” para pessoas que sofram de perturbações do espectro do autismo. Não considera que sejam usadas como insulto — “insulto é muito forte” — mas que “é como se a palavra estivesse na moda”.

“Esta é uma doença que só foi identificada em 1943, é recente, mas é muito grave, e devemos ter o máximo respeito pelas pessoas que sofrem de perturbações do espectro do autismo”, diz.

A Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo do Douro trabalha com uma população de cerca de 100 pessoas, “com alguns casos muito interessantes”, “com pessoas totalmente autónomas”. Mais: “Alguns jovens não verbalizam mas comunicam de outras formas.”

“Há pessoas que não têm consciência de que têm esta doença”, afirma Ana Maria Gonçalves. "Mas para outras pessoas que estão conscientes disso, é entristecedor e limitativo ver estas situações."

Texto editado por Andreia Sanches

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