O poder central devia estar mais presente na cultura? Devia, mas as câmaras dão conta do recado

A cultura é um motor de desenvolvimento. Os municípios fora das grandes cidades sabem disso e cuidam deste sector como podem, como sabem, sem perder tempo à espera de apoios que não chegam. De norte a sul, há estratégias, projectos, vontade de fazer. Longe do poder central, perto das populações

A partir de 24 de Maio e ao longo de três dias, a Feira vai receber 117 espectáculos de 16 países
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O Imaginarius chama muito público à Feira Paulo Pimenta
“Independentemente da condição em que se encontram, os cidadãos são parte activa da Capital da Cultura”, sublinha o presidente da Fundação Guimarães 2012, João Serra
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Guimarães foi capital da cultura em 2012 Adriano Miranda
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Mértolo usa o seu património arqueológico como polo de atracção

O coreógrafo Victor Hugo Pontes é natural de Guimarães. No início de Fevereiro, esteve no festival de dança contemporânea GUIdance a estrear Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a – e que no final desse mês foi apresentado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Cada regresso a Guimarães — agora mora no Porto — é um voltar a casa. A uma casa que bem conhece. Em 1994, com 15 anos, estava na Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral (ODIT), proposta da câmara de Guimarães, que mais tarde daria origem ao Teatro Oficina. Havia cerca de 600 inscritos. “O que revela que havia muita gente com muita vontade de fazer coisas nas artes”, lembra agora. Fez de tudo um pouco: construção de marionetas, figurinos, montagem de luzes, espectáculos para público infantil e adulto. “Foi uma excelente escola, um sítio onde aprendi imenso como actor.” E ali nasceu como artista.

Guimarães é uma “casa” que apresenta como exemplo na forma de acompanhar os artistas e na relação que estabelecem com a cidade, na diversificação dos processos criativos e em mostrar como se constrói um objecto artístico, bem como na ponte que faz com as escolas, com os professores, na formação de novos públicos. Para Victor Hugo Pontes, a cultura não pode estar apenas nas grandes cidades e as responsabilidades devem ser repartidas. “A cultura também deve ir ter com as pessoas.” E o poder local não pode ter tudo em cima dos ombros. “As pessoas que conhecem o território sabem o que é preciso ser feito, mas não basta. É preciso abrir os horizontes, tem de existir outro tipo de apoio. Temos um Ministério da Cultura que deve ter um poder sobre as estruturas.”

Quem programa deve saber o que faz. Este é um aspecto que preocupa o coreógrafo. “As câmaras devem ter um papel muito activo, mas têm de perceber quem são as pessoas que estão a programar”. Para evitar ter espaços culturais geridos por responsáveis que não têm o perfil adequado. “Não têm conhecimentos e programam por orçamentos, independentemente da qualidade dos projectos”. Por isso, insiste na formação de programadores culturais.

Em 2012, Guimarães foi Capital Europeia da Cultura. Tem um festival de jazz, de dança contemporânea, de teatro, uma orquestra, um quarteto de corda, uma companhia profissional de teatro, o Centro Cultural de Vila Flor com programação regular, licenciaturas em Artes Performativas e em Design, o Centro Internacional das Artes José Guimarães. E tem, neste momento, Excentricidade, programa que desenhou para que cinco freguesias da periferia tenham programação cultural nas áreas de teatro, dança, cinema e música.

José Bastos, vereador da Cultura da Câmara de Guimarães desde Outubro de 2013, sabe qual é o caminho. Não quer um município a descansar à sombra do passado histórico, quer acrescentar novas camadas de intervenção cultural contemporânea. Dar autonomia para criar e garantir a qualidade das propostas. Analisar, planear, pensar metodologias, acreditar nos projectos. Coerência política, continuidade no que é feito, procura de memória futura. “Acreditamos que é o caminho certo”.

O orçamento municipal de Guimarães reservou este ano 6,7 milhões de euros para a cultura que correspondem a uma fatia de 7,6% do bolo. O número enche o olho. “Guimarães tem uma aposta sistemática na cultura que é um factor distintivo para a construção da cidadania, coesão social, evolução das mentalidades, um motor do desenvolvimento económico”. O trabalho nunca é fácil, há responsabilidades redobradas, o peso de ter sido capital europeia da cultura. José Bastos olha à volta e vê que na ausência de um plano nacional no sector cultural, transversal a todo o território, são as câmaras que assumem esse papel e vão dando conta do recado. O vereador também vê diferenças. Analisou o Orçamento de Estado e, não sendo um estudo científico, avança com números e conclusões nas entrelinhas. “Lisboa tem um financiamento directo para a produção artística de 43 milhões de euros, o Porto mais de 14 milhões, e o resto do país tem zero”. Um cenário que, na sua opinião, “é gritante” e que precisa de ser revertido. “A coesão social não pode ser uma palavra vã, tem de ser uma prática concertada”, defende.

Guimarães continuará o seu caminho, mas José Bastos pede maior atenção para o que acontece fora dos grandes centros urbanos, nomeadamente Lisboa e Porto. Pede maior presença do poder central. “O Estado tem de olhar para o território como um todo. Na programação cultural e na criação artística tem de ter um olhar de maior equidade”, refere.

O Minho a ver teatro
Guimarães é um exemplo, mas há mais ali perto. No Minho, a lógica não segue o caminho habitual. Numa inversão de papéis, o poder local, ou melhor, cinco câmaras do Norte do país mostraram que é possível criar um projecto cultural de raiz fora das grandes cidades, que funciona e que chega a sítios onde, de outra forma, seria complicado ter uma oferta consistente e regular. A Associação Comédias do Minho junta Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira. Foi constituída em 2003 e começou a trabalhar no ano seguinte para captar públicos, colmatar lacunas próprias das regiões do interior, estar perto das comunidades, criar e difundir propostas culturais. A Caixa de Crédito Agrícola, mecenas privado, e a Direcção-Geral das Artes também apoiam o projecto. Já há uma companhia profissional de teatro, que leva peças em itinerância às aldeias e a locais não convencionais; um projecto pedagógico e um projecto comunitário que envolvem populações e associações culturais locais. Já lá vão quase 13 anos e este projecto continua o seu trabalho, chegando a um quarto da população residente nos cinco municípios nos meses de época baixa. Em Fevereiro, as Comédias do Minho estrearam-se no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, com Os Dozes Pares de França, peça que, numa outra versão, percorreu os municípios minhotos até ao início desse mês.

João Pedro Vaz, director artístico, fala numa “confusão saudável” mas sem sobreposições porque tudo o que é feito não é menos importante ou menos acessório do que o trabalho da companhia de teatro. Há um programa intenso de serviço cultural, vários eixos de actuação, uma rede de colaboradores locais, funcionários da divisão da Cultura dos cinco municípios que recebem formação artística com as Comédias do Minho. “Este projecto mobiliza-se em direcção às pessoas”, refere. “Usamos os instrumentos de trabalho e diversificamos a oferta para responder às necessidades do território e o território acaba por encontrar necessidades em nós”, acrescenta. E o que poderia ser um bico-de-obra para qualquer estrutura, é orgânico para as Comédias do Minho. “Só temos uma rede cultural formal, tudo o resto são redes informais, não têm protocolos”. Tudo se articula num processo que se concentra em trabalhos de intimidade e que faz da paisagem um palco privilegiado.

O projecto vai assim percorrendo o seu caminho consciente que tem também uma componente de renovação e de reestruturação do próprio tecido social. “É um projecto que poderia ser melhor observado pelas tutelas. É muito interessante, há aqui uma inversão total, foram as câmaras que acabaram por dizer e por mostrar que afinal isto pode fazer-se assim e resulta”.

Dois anos depois da criação da Comédias do Minho, foi criada, a Sul, a Artemrede. Esta é uma rede cultural constituída actualmente por 14 municípios na região de Lisboa e Vale do Tejo - Abrantes, Alcanena, Alcobaça, Almada, Barreiro, Lisboa (que aderiu este ano), Moita, Montijo, Oeiras, Palmela, Santarém, Sobral de Monte Agraço, Sesimbra e Tomar. Foi criada para apoiar os seus associados na gestão e programação dos seus teatros e de outros equipamentos culturais, estando a desenvolver, há já 11 anos, actividade ininterrupta nas áreas da programação cultural, projectos educativos e formação especializada.

O exemplo de um cineteatro
Em Santa Maria da Feira, o investimento na cultura faz parte da rotina. Há 15 anos que o concelho, situado entre Porto e Aveiro, percebeu que o património imaterial era motor de desenvolvimento em várias frentes. Colocou no mapa o Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua, a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, o parque temático Terra dos Sonhos, o Festival Para Gente Sentada, que entretanto se mudou para Braga, e que trouxe ao cineteatro local Devendra Banhart, Patrick Watson ou Tindersticks.

No gabinete do vereador da Cultura, Gil Ferreira, está um quadro com várias opções estratégicas e políticas e onde se lê “Santa Maria da Feira continuará a ser uma referência nacional na área da cultura”. O maior retorno reside no “capital simbólico gerado pela actividade cultural na comunidade”, refere o vereador, que realça as actividades dinamizadas por associações e agentes culturais locais que se têm especializado em várias disciplinas artísticas. Vale a pena, acrescenta, “pelo potencial de transformação que a cultura tem no indivíduo”.

Aqui a cultura também é vista como um agente de coesão social e a política centra-se em acções permanentes, sistematizadas, em dinâmicas que geram oportunidades, em apoios financeiros concebidos a criações locais que possam ser difundidas por redes internacionais como a Circostrada - a rede mais importante de artes de rua na Europa e a que Santa Maria da Feira pertence desde o ano passado. “As acções deixam lastro e são geradas a partir da relação do artista com a comunidade”. O mais importante não é a sustentabilidade económica, é a sustentabilidade social.

Gil Ferreira recua ao início deste século para lembrar sementes lançadas à terra, como o Simpósio Sete Sóis Sete Luas que levou à biblioteca municipal nomes importantes do pensamento contemporâneo como José Saramago, Roberto Saviano, Salman Rushdie, Eduardo Lourenço, Francesco Alberoni, Paul Rusesabagina ou Oliviero Toscani. “Certamente que essas figuras influenciaram uma nova geração”. A formação de novos públicos e de massa crítica informada, não apenas consumidora mas potencialmente criadora, não passa despercebida.

O Cineteatro António Lamoso foi remodelado e há mais de um ano que tem programação regular. Antes de 2015 terminar, o vereador fez o balanço de um ano de cineteatro. As receitas superaram as expectativas: 79 mil euros em caixa quando as previsões apontavam para 65 mil. “Não só nos deu esse indicador positivo, como também as actividades que mais público tiveram não foram as de entrada gratuita, mas as pagas. O que significa que o público está consciente, sensível e disponível para assistir a determinados espectáculos”. Ao todo, 41 semanas ininterruptas de programação, 104 actividades realizadas, 21.698 pessoas na plateia, promoção de cinco artistas locais. Este ano tem um orçamento de 135 mil euros para programação, mais 15% do que no ano passado. Já este mês, o cineteatro tem em cartaz António Zambujo e Miguel Araújo e para Maio, os Deolinda. Gil Ferreira fala no cineteatro como um espaço cosmopolita e popular para públicos heterogéneos. “De facto, a afirmação cultural de um território só é visível se tiver este espectro e for simultaneamente popular e cosmopolita”.

Os grandes eventos — a Viagem Medieval, o Imaginarius, o Perlim — mantêm-se na programação e a câmara está a trabalhar num festival na área da música, que quer implementar até ao final do mandato. Em mãos tem a Caixa das Artes, um pólo de criação, que quer aproveitar o know-how nas artes de rua. Irá funcionar entre o palco do remodelado cineteatro — para os espectáculos — e o matadouro municipal — para as criações e residências artísticas. Em Maio, na próxima edição do Imaginarius, o público já poderá perceber o que é a Caixa das Artes que, segundo Gil Ferreira, “dará origem a um renovado ecossistema cultural”. “[Na Caixa das Artes] É muito visível o investimento material, mas o que importa reter não é o hardware, mas o software, e o software está a ser construído respeitando um conjunto de valores: interdisciplinaridade, internacionalização, coesão social, criação em residência... é aí que se centra o nosso esforço, a nossa aposta”.

Nos últimos anos, Santa Maria da Feira tem investido na cultura cerca de quatro milhões de euros – em 2016, a quantia sai de um orçamento de cerca de 64 milhões de euros. Há apoios financeiros directos às associações culturais do município que se candidatem ao Programa de Apoio a Projectos Culturais. Em 2015, foram apoiados 19 projectos, em 2016 são 26. “É o reflexo de uma política que se enquadra na visão holística do desenvolvimento do território e financia esse trabalho planeado, colaborativo e em rede, apoiando sobretudo a procura do novo”. “O investimento directo municipal implica que as associações façam uma procura de uma nova forma de estar na prática cultural, que seja também reflexo de sinergias entre associações”, acrescenta. O plano representou uma mudança de paradigma que, na sua opinião, começa a funcionar. “Não faria sentido que todas as associações tivessem festivais de teatro. O que faz sentido é associações se juntem para organizar um festival de teatro com base colaborativa, em parceria, em rede, e que gere maiores oportunidades de disseminação pelo território e de reposição do evento”.

Puxar pela cultura
Viseu também apoia a produção artística independente, projectos consolidados e outros, emergentes de diferentes áreas artísticas, num concurso que está na segunda edição e que se chama Viseu Terceiro. O nome não é por acaso. DAqui a uma década, Viseu quer tornar-se no terceiro pólo cultural do país. Almeida Henriques, presidente da câmara, assume que é um desígnio ambicioso que não vai descurar, e sabe com o que pode contar: “Se estivéssemos à espera do poder central, não havia actividade cultural”. O Viseu Terceiro recebeu 79 candidaturas e apoiará 23 projectos em 2016, até ao montante máximo de 90%. Um investimento municipal de 500 mil euros, uma parte dos 2,5% do orçamento que alocou ao sector cultural. Ainda nas contas, a câmara lançou um desafio aos seus principais fornecedores para que revertam 2% da facturação anual para o mecenato cultural. Alguns já aceitaram.

“A cultura é uma mola de desenvolvimento da cidade”, afirma Almeida Henriques. Os 2500 anos de história e o património herdado são importantes, mas a inovação também é fundamental. A estratégia tem sido estimular a comunidade a criar para que ganhe competências e não se vergue a um calendário de eventos comprados fora. “Não somos uma produtora de espectáculos, procuramos estimular a criação”, refere, a propósito. A lógica é que tudo pode ser pretexto para puxar pela cultura. Almeida Henriques quer que todos os alunos de Viseu terminem a escolaridade obrigatória a saberem tocar um instrumento. Há três escolas de música, um conservatório, um espaço para artes plásticas. Viseu tem o projecto Jardins Efémeros, o Teatro Viriato onde está a Companhia Paulo Ribeiro, o Festival de Música da Primavera, o Outono Quente, um festival multidisciplinar.

No início do ano, no centenário do Museu Nacional e na presença do ministro da Cultura João Soares, Almeida Henriques não perdeu a oportunidade de avisar que a cultura não pode estar amarrada num colete de forças. Pediu a reprogramação do Portugal 2020, o programa que define a aplicação dos fundos comunitários, para que se reforce a política cultural e o património histórico. João Soares ouviu e prometeu apelar à ajuda divina para concretizar o “milagre” de reforçar política e financeiramente a cultura e o património. “Não lhe estava a pedir milagres no aumento do orçamento”, explica Almeida Henriques. Pedia, isso sim, a reprogramação dos fundos comunitários. “Independentemente da dinâmica territorial que temos, obviamente que a presença nacional poderia ser mais importante”, observa.

Fátima Alçada é assessora cultural, trabalhou na programação e coordenação de produção em vários territórios, Guimarães, Santa Maria da Feira, Estarreja. Está agora na programação cultural de Ovar. Na sua opinião, a falta de uma estratégia nacional coloca a cultura à mercê das políticas locais e as câmaras acabam por colmatar essa ausência de investimento e de iniciativas que poderiam emanar do poder central. “Se assim não fosse, seria um deserto total”, repara. “Devia haver uma política nacional com algumas directrizes e depois, localmente, cada município trabalharia especificamente o seu território”, defende. As autarquias assumem assim um papel importante nesta área e acabam por ser “a única forma de termos uma oferta cultural” e chegar ao público. Os políticos locais, em seu entender, “perceberam claramente que a cultura pode ser o alavancar de uma série de outros factores” e que o desenvolvimento cultural traz desenvolvimento social e económico. As câmaras perceberam que a cultura não é apenas um espectáculo. É muito mais do que isso. A cultura traz novidades para o dia-a-dia das pessoas.

Lembrar Vergílio Ferreira
Gouveia está a celebrar o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. A câmara investiu mais de 100 mil euros para as iniciativas, que se estendem até ao início do próximo ano. Do poder central nada chegou. “É o reconhecimento que o Estado português dá a este vulto da literatura portuguesa”, ironiza Luís Tadeu, presidente da câmara. “Se estivéssemos à espera do poder central não fazíamos nada”. Por isso, este município do interior arrepia caminho.

A cultura desenvolve as gentes da terra, abre horizontes, e o autarca não abre mão do investimento que faz nesta área, mesmo que diga que é como uma pescadinha de rabo na boca. Se há eventos, mesmo gratuitos, por vezes não há muita gente na plateia. Se não há iniciativas culturais, chovem críticas. De uma maneira, ou de outra, faz-se sempre. “Teimamos em fazer. Haja muito ou pouco público”. Este ano, as atenções estão centradas em Vergílio Ferreira, mas Gouveia tem a G!O Romaria Cultural, um festival de teatro, um festival de migas e do azeite, um festival de rock e outro de folclore, as festas da cidade. E a autarquia está, de uma maneira ou de outra, em todas as actividades e vai apoiando as seis bandas filarmónicas e os cinco ranchos que moram no seu território.

Cultura pelos montes alentejanos

A cultura é importante e Mértola sabe disso. “Quando era jovem as ofertas culturais eram determinadas por critérios políticos”, recorda Jorge Rosa, presidente da Câmara de Mértola. Hoje já não é bem assim. “Dificilmente as pessoas se deixam regular por orientações impostas de cima”, diz o autarca, assumindo que há uma mudança na apreensão das práticas culturais. “As pessoas sabem o que querem, há maior diversidade nas opções e são mais exigentes”.

Os condicionalismos impostos pela dispersão demográfica obrigaram a autarquia a levar teatro, música, cinema, aos montes e lugares do concelho. A cultura veiculada “está cheia de irreverência, desperta as consciências e ajuda as pessoas a serem diferentes”. Jorge Rosa sabe que se não fosse a autarquia, o acesso às actividades culturais “seria impensável”. No entanto, o “bom senso e uma gestão equilibrada” impõem-se para evitar “luxos” desnecessários.

Mértola é um concelho com uma história peculiar. Situado na raia com a região espanhola de Andaluzia, assegura uma ligação que se tem acentuado desde o 25 de Abril de 1974 com o Norte de África. A sua rede museológica revela precisamente um passado milenar que a destaca no contexto nacional. O arqueólogo Cláudio Torres, director do Campo Arqueológico de Mértola, sintetiza a matriz cultural e histórica de Mértola. “Muito antes das guerras púnicas que viriam a acelerar a abertura da Lusitânea a uma nova era, já na antiga cidade de Myrtilis habitava uma comunidade de mercadores, cujos negócios se relacionavam directa ou indirectamente com o Oriente Mediterrânico”. 

Jorge Rosa também vinca a importância desse passado como um “veículo de distinção cultural que traz até à terra alentejana “grupos musicais, práticas tradicionais, gastronomia e naturais do norte de África”. E essa componente histórica molda a cultura que a autarquia partilha com a comunidade. A emanação da vontade colectiva está consolidada nas orientações do trabalho cultural que a autarquia desenvolve.

O Campo Arqueológico de Mértola é uma experiência ilustrativa de como é possível consolidar a cultura e o património histórico no interior alentejano. Cláudio Torres é o mentor da experiência, única a nível nacional, baseada na investigação do passado de Mértola. Ao longo de 40 anos conseguiu dinamizar a instalação de 12 museus e chamar até à vila alentejana investigadores do Magrebe que não encontram ali, sob influência do islão, o seu passado histórico, destruído pelos franceses quando procuravam vestígios da presença romana. Hoje, conta, “não há um único museu islâmico no Magrebe” e os investigadores de Marrocos, Egipto e Tunísia vêm até Mértola visitar “o que cá existe.” Assim o trabalho de pesquisa arqueológica deu lugar ao estudo do Islão. “Estamos a receber estudantes em fase de doutoramento ou a fazer mestrados e um número crescente de investigadores. O Islão está na moda pelos maus motivos”, frisa Cláudio Torres.

Para aprofundar essa investigação, o Campo Arqueológico de Mértola realizou um convénio com as Universidades de Faro, Évora e a Nova de Lisboa para o estudo do património mediterrânico. “Quem quiser estudar o Islão tem de vir a Mértola”. Toda esta dinâmica cultural reflecte-se na actividade económica local. Neste momento, Mértola, com uma população de um milhar de habitantes, recebe 50 mil visitantes por ano. Foram instaladas 600 camas no concelho em turismo rural e turismo de habitação, para fugir à instalação de uma grande unidade hoteleira, que chegou a ameaçar instalar-se. “Assim o dinheiro fica na terra e distribuído por mais gente”, refere o arqueólogo.

Alternativas regionais na promoção cultural
Trabalha-se bem no Alentejo e o município do Redondo orgulha-se do que faz. Num concelho onde o cante e as saias se entrecruzam nas opções musicais dos seus habitantes, esta é a componente maior da intervenção cultural. Segundo Armindo Ramalhosa, responsável pelo pelouro da Cultura da Câmara de Redondo, no concelho existem quatro bandas filarmónicas e quatro grupos de canto coral, os Cantadores e as Cantadeiras de Redondo expressam bem o peso que a música representa na actividade cultural do concelho do Alentejo Central.

Além do cante tradicional alentejano, fazem parte do reportório das Cantadeiras do Redondo cantares tradicionais portugueses, cujas vozes se conjugam com o canto lírico e orquestras clássica e ligeira. “A música é uma referência identitária da nossa região e uma forma de nos mostramos aos outros”, refere Armindo Ramalhosa. 

O responsável garante que o investimento na cultura tem retorno quando é reforçado com a realização do evento Ruas Floridas, que tem carácter bianual. Em anos normais, o investimento na cultura ronda os 350 mil euros. Em anos floridos, chega aos 600 mil para trazer às ruas do concelho entre 400 a 500 mil pessoas. Os hotéis ficam cheios no Redondo, Évora, Estremoz, Borba e até em Badajoz, garante o autarca, para frisar que não se trata de esbanjamento financeiro. Toda esta dinâmica traduz-se “na melhoria da qualidade de vida da população”.

As Cantadeiras de Redondo, que se formaram há dois anos e têm 19 mulheres, querem mais jovens cantadeiras porque sentem que o cante feminino na vila de Redondo “tem um futuro promissor”. A sua primeira actuação pública foi feita a convite do grupo de Cantadores de Redondo, coordenado pelos irmãos Janita e Vitorino, pormenor que realça o peso que a música tradicional tem na vila alentejana. Armindo Ramalhosa diz que a opção da autarquia não passa por “facilitar” nas propostas culturais, embora admita que incutir nas pessoas uma cultura musical de qualidade “não é fácil”.

A Marvão pouco mais resta do que a sua história e os seus valores culturais e patrimoniais para lhe dar visibilidade e estancar a perda demográfica.  No início do século (Censos 2001) residiam no concelho do norte alentejano 4.019 pessoas. No espaço de uma década a população foi reduzida para os 3.482 habitantes (Censos de 2011). Por cada 100 jovens residem em Marvão 348 idosos.

Com a sede de concelho localizada entre muralhas no cerro elevado da serra de São Mamede, o presidente da Câmara, Vítor Frutuoso, descreve o esforço da sua gestão para garantir qualidade às propostas culturais promovidas pela autarquia. “Nós não temos uma sala de cinema na sede do concelho. A solução foi levar o cinema às pessoas”, que se dispersam por pequenas comunidades com meia dúzia de habitantes ou pouco mais.

A realização do Festival Internacional de Música de Marvão e do Festival Internacional de Cinema de Marvão, de carácter bianual ou a apresentação de livros, é um caminho que Vítor Frutuoso descortinou para trazer à terra visitantes e, ao mesmo tempo, propiciar “aos residentes o caldo de cultura necessário à sua valorização”. Consciente das limitações que a gestão municipal terá sempre, “por sermos pequenos e não nos ligarem por esse facto” — Marvão é dos concelhos do país que menos dinheiro recebe da administração central: através do Fundo de Equilíbrio Financeiro (2015) foram transferidos 3.279 milhões de euros (Dados Direcção Geral das Autarquias Locais)— o autarca assume que a câmara “existe para dar voz às pessoas” e que a cultura é um meio de valorização que torna os cidadãos mais conscientes.

Marvão não pode ter fábricas, por causa do Parque Natural da Serra de Mamede e a agricultura perdeu expressão. Mas abunda património histórico e natural para oferecer um turismo sustentável. A “visibilidade” é determinante, salienta Vítor Frutuoso, acrescentando que a gestão das propostas culturais tem de ser selectiva, sem esquecer folclore e gastronomia. Segundo o autarca, o nome de Marvão nos meios de comunicação social “é uma vantagem que traz retorno”.

Um dado é evidente. As pessoas “já não pensam nem agem” como há décadas. E em paralelo realça o fenómeno dos novos povoadores. São pessoas que vêm do litoral viver para o interior na busca de melhor qualidade de vida. Este facto é gerador de novos conceitos culturais na formação de uma outra mentalidade nos comportamentos na comunidade de Marvão.    

O Festival Terras Sem Sombra (FTSS) iniciou no dia 27 de Fevereiro a sua 12ª edição em Almodôvar. José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja (DPHADB) entidade que continua a dar sequência a um sonho acalentado pelo bispo de Beja, D. Manuel Franco Falcão, falecido em 2012, diz que o festival foi idealizado para “colocar o Alentejo no circuito da música erudita”. No entanto, a sua acção estende-se sobretudo aos concelhos alentejanos com características rurais.

O evento assume uma dimensão territorial e envolve municípios, empresas regionais ou com presença na região, paróquias, misericórdias e a sociedade civil, do Baixo Alentejo e o Alentejo Litoral, para “romper” o isolamento provocado pela “excessiva concentração da vida cultural e artística nas grandes áreas metropolitanas”, justifica António Falcão.

Ao longo de 12 anos, o FTSS tem proporcionado “experiências únicas, dificilmente replicáveis” com impacto nas comunidades onde decorrem as intervenções culturais. Mais de 60% dos espectadores são dos próprios concelhos onde o festival tem lugar. Outros 20% vêm da região e os restantes de uma área de influência que se estende de Huelva a Madrid, de Saragoça a Santiago de Compostela, da área da Grande Lisboa e do Algarve. 

O DPHA envolve na sua actividade 14 membros, essencialmente voluntários, e cerca de 200 colaboradores dispersos no terreno. “Foi este o modelo desenhado por D. Manuel Falcão”, conclui o director.

Câmaras algarvias: cada uma por si
O orçamento do Teatro Municipal de Faro/Teatro das Figuras, não sendo generoso, chega ao milhão de euros. A verba, quando comparada com outras estruturantes semelhantes a nível nacional, não é significativa mas acaba por ganhar relevância no contexto regional. É que o dinheiro que a direcção regional da cultura dispõe para apoio à acção cultural fica-se pelos 160 mil euros, a distribuir por meia centena de entidades. Por esta e outras razões, o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve – Amal, Jorge Botelho conclui: “O ministério da Cultura deste país são os municípios”.

Mas, se por um lado, as periferias se queixam do “centralismo” de Lisboa, também não deixa de ser verdade que, dentro da própria região, cada autarquia define as suas prioridades, sem olhar para o concelho vizinho. De resto, a própria AMAL – a entidade que representa o poder local - não dispõe de orçamento destinado a suportar qualquer iniciativa inter-municipal neste sector. O director da Companhia de Teatro do Algarve – ACTA, Luís Vicente, enfatiza: “O serviço de apoio educativo da ACTA [levar o teatro às escolas] tinha um orçamento de oitenta mil euros ano. No ano passado teve 12 mil euros”. Das 16 câmaras da região, cinco deixaram de financiar o projecto. Porém, surgiu, no principio do ano, uma tentativa de contrariar o que parece ser uma fatalidade – a falta de uma programação à escala regional, envolvendo todas as autarquias.

Com o objectivo de esbater barreiras administrativas e colocar a cultura no “centro da política regional” foi criada a Rede Azul – uma rede de teatros para o Algarve, abrangendo 11 salas abertas à criação artística. Primeira iniciativa: um concurso destinado a distinguir, com um prémio de sete mil euros, os criadores culturais da região. Os promotores desta Rede são Dália Paulo, directora do departamento de desenvolvimento humano e coesão da Câmara de Loulé, e Joaquim Guerreiro, director do Teatro Municipal de Faro. A ideia de criar uma estrutura que promova a economia de escala e a circulação cultural, a par da criação artística, é vista com agrado por Luís Vicente. “Sim, é uma boa ideia, mas …”. O actor considera que o Algarve é “negativamente discriminado” em relação às restantes regiões. Com o objectivo de inverter a estado das coisas e “pressionar a discussão”, acrescenta, foi entregue na Assembleia da República uma petição com mais de 4 mil assinaturas.

Joaquim Guerreiro reconhece que a união dos municípios foi forçada pelas necessidades. “Não teremos acesso aos fundos comunitários se não trabalharmos em conjunto”, justifica. A primeira experiência nesse sentido aconteceu entre 2011 e 2012, quando cinco câmaras do Algarve Central – Faro, Loulé, Olhão, Tavira e Albufeira – se associaram para criar um programa conjunto: “Movimenta-te”, assim foi designado o projecto em rede. Acabou-se o pacote dos 350 mil euros, suportados em grande medida através de uma candidatura ao QREN (2009) PO Algarve 21, terminou a sinergia da inter-municipalidade.

Jorge Botelho que é, também, presidente da Associação Musical do Algarve – a entidade que dirige a antiga Orquestra do Algarve, lamenta: “Quando as câmaras querem ter um concerto de projecção nacional, por proposta dos artistas, têm de assumir os riscos de bilheteira”. A programação nacional, justifica, não arrisca descer às periferias .Os anos dourados do investimento na cultural e animação (mas apenas no Verão) esfumaram-se com a extinção do Allgarve - um conjunto de eventos destinados a promover o sector turístico pelo lado da cultura. Ao fim de cinco anos acabou, sem deixar marca na criação de novos públicos.

Outro reflexo dos cortes orçamentais: A Orquestra do Algarve, há cerca de ano e meio, passou a designar-se Orquestra Clássica do Sul, para tentar obter no Alentejo o complemento dos apoios que lhe foram negados pelos municípios do Algarve. A direcção regional da cultura dispõe de um orçamento de 4 milhões e 832 euros, mas três milhões estão comprometidos com a proposta da recuperação de Centro de Exposições, em Sagres. As prioridades da AMAL, até agora, tem sido dirigidas para a identificação do património histórico a recuperar, com a ajuda dos fundos comunitários.

 
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