A coisa cultural

Não há democracia sem qualificação cultural, ou seja, literacia generalizada, criativa e crítica, estruturante. É o que não temos, nem somos.

Em Portugal há uma questão cultural. É a da sua inexistência — conexa à ficção de uma política, de um sector, de uma articulação e convergência de potencialidades inscritas nas suas actividades — e na gestão dos bens patrimoniais que a constituem. Quando o que domina é o simulacro, a conversa tagarela sobre os seus “fenómenos” constitutivos — do património à criação contemporânea, da arquitectura ao teatro, dos museus à dança, do cinema ao ensino artístico, da formação aos públicos, etc., o que se “dinamiza” é o bloqueio do que potencialmente encerra como nova vida, democracia por vir. Quanto menos tem expressão orçamental, orgânica, institucional, pública e mais se desencontra, perdida no caos do mercado que tudo nivela pelo número, mais é assunto e fulanização, firmamento lisboeta e castings disparatados, esses sim, O assunto.

A questão do Ministério só seria relevante — será? — no caso da sua reestruturação, depois das desarticulações anteriores, corresponder a um reconhecimento exacto das áreas de responsabilidade, a um programa de convergências das potencialidades da sua identidade aberta multidisciplinar e a um orçamento desse vastíssimo território — que não é obviamente o do “tudo é cultura”, essa lapalissada. Mas não foi assim. A chegada de João Soares ao Ministério veio impor um estilo itinerante e pontualizado à função: as questões evidenciadas, no meio da tragédia vivida da destruição do que constitui a nossa vida cultural real, foram levitando num limbo noticioso “elevado” e nos temas relacionados com as Grandes Estruturas do Estado e derivados: Serralves (Sector Público/Governo Privado), CCB (pura confusão), colecção Vieira da Silva e o caso dos Mirós, para ficar por aqui. Não que não sejam assuntos culturais, mas são, é claro, assuntos financeiros proeminentes e assuntos ligados às pessoas que estão ligadas a essa proeminência do financeiro.

Ora a questão cultural é outra no nosso país. É a da superação de uma iliteracia — a tal batalha pela qualificação — na raiz de tudo o que seja ler e ler as linguagens das artes, herdada do vazio que o fascismo alimentou como política e como estrutura do que fosse “cultural” — lembremos o SNI e para trás todas as formas de elitismo provinciano, nacionalista, orgulhoso e só. Essa iliteracia, com a inexistência nestas décadas de uma política cultural da democracia que democratizasse e qualificasse culturalmente o país, permanece e impõe que hoje, com a globalização e a imposição de um mundo único do ver, ouvir e fruir as linguagens artísticas, converteu em formas de consumo que são modos de ler rápido, veio impor que a política — a haver e realizar, a programar — seja essencialmente uma outra coisa: o estímulo, fruto de programas e estruturas de acção alimentadas e apoiadas enquanto serviço público cultural/artístico/educativo/formativo à criação e vivificação das tradições patrimoniais identitárias, culturalmente próprias, nossas e de outros do nosso espaço vital europeu e lusófono, dos clássicos e contemporâneos e das actividades relativas às linguagens da língua e da multiplicidade universalizada das artes, enraizadas nas tradições da matriz cultural e estética greco-latina (e nas outras matrizes culturais com estatuto universal partilhável), europeia, e da experimentação criativa nas artes do espectáculo não comercial ao vivo e das novas linguagens, com novos suportes. Essa vida de estímulo a uma identidade contemporânea na diversidade que não vire as costas à língua profunda, só pode alicerçar-se na existência de um conjunto de estruturas, circuitos, equipamentos e edifícios que, numa coerente articulação territorial e demográfica, pratiquem, operem programaticamente a convergência dinâmica — esse é o papel do Ministério e Serviços e é uma consequência da política, não uma “ordem” imposta — das potencialidades de criação, divulgação, formação, de “centros de criação” que, com as mais diversas finalidades e modos organizativos, constituem — e podem constituir de modo mais determinante — a base da nossa democracia cultural.

Uma política cultural é o resultado da aplicação de uma lógica laica a tudo o que vindo da tradição culturalmente qualificada— a inovação daí vem e toda a “memória” futurante, como a recriação hoje do que seja a obra de Shakespeare, vasto e diverso duplo do mundo, por exemplo — deva preservar-se e recriar-se, reinventar-se criação e é o resultado do acesso à criação e fruição cultural em moldes que correspondam a essa qualificação dos portugueses, como se diz, o que só pode coincidir com o aprofundamento da literacia cultural que, objectivado na própria vida da democracia como uma força sua, nos leve a uma emancipação de todas as formas de escravatura, de alienação, de estupidificação, decorrentes da acção constante dos poderes de facto do mercado e das forças regressivas, que se batem pela desigualdade, pelo desemprego, pela superficialidade dos conhecimentos, pelo zapping consumista e por novas formas de exploração — o espaço da cultura é um espaço de emancipação crítica e isso tem de ser afirmado com coragem, não é um espaço de afirmação elitista, mas de projectos elitistas para todos.

Para a estruturação convergente e referida do todo das artes e bens patrimoniais - sem totalitarismos orgânicos, mas pelo contrário, estimulando o pulsar dinâmico de entidades autónomas em relação potencial, consumada como experiência sensível na pessoa do cidadão —, os exemplos organizativos são inúmeros: os “Stabile” italianos, os Centros Dramáticos e Coreográficos franceses, os múltiplos Teatros Nacionais da Alemanha, de vocação diversa, as Orquestras de todo o tipo, o Cinema de Autor com produção e distribuição adequada, etc. E há que dizer que, se temos um problema local — o da desqualificação vertiginosa da língua via “acordo ortográfico”, p. ex. — não há propriamente respostas portuguesas ao problema cultural enquanto novo ordenamento cultural — essa, a de uma organização especificamente cultura da coisa cultural é o que vivemos e que resulta não de um ordenamento mas de uma desordem, cujas espontaneidades, “evoluindo" ao longo das décadas de democracia, foram cristalizando em formas de produção e existência sobreviventes, precárias.

Haverá respostas democráticas que podem, e bem, partir de exemplos concretizados na Europa que a crise — negócio e saque dos dinheiros públicos e do Estado Social — quer destruir. A estruturação dos sectores públicos, e do serviço público cultural, dos países europeus que sejam referência de vida cultural democrática, inscrita na vitalidade “potencial” dessas democracias — é difícil ver isso nesta altura em que o “terrorismo” é o tudo e o todo — passa pela existência das grandes, médias e pequenas estruturas do Estado no todo nacional, como passa por estimular e apoiar os centros de criação cultural/artística que, de iniciativa privada e cidadã, sejam, de facto, factor desse futuro de emancipação democrática e iniciativa da base da democracia - é da articulação deste todo de diversidades estruturado (cada arte é um fenómeno, cada “activo cultural” uma realidade concreta) por criar, que a componente cultural da democracia e a própria democracia dependem. Não há democracia sem qualificação cultural, ou seja, literacia generalizada, criativa e crítica, estruturante. É o que não temos, nem somos.

Encenador

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