Aleluia, entramos no século XXI

Esplêndida realização musical na estreia cénica em Portugal de uma ópera de um importante autor contemporâneo, John Adams.

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Rui Gaudêncio

O norte-americano John Adams (n. 1947) é um dos mais notórios e versáteis compositores contemporâneos. Oriundo da escola minimal repetitiva (Terry Riley, Steve Reich, Phil Glass), Adams evoluiu num sentido “maximal”, de recursos e estrutura, o qual, nomeadamente, o tornou num mestre das grandes formas orquestrais. Shakers Loops, Harmonieliehere, Sinfonia de Câmara, The Chairman Dances, Eldorado ou The Dharma at Big Sur são algumas obras mais salientes desse domínio orquestral.

Mas Adams é também um ímpar autor dramático, nomeadamente de óperas. Nixon in China, em 1987, foi um verdadeiro “golpe de teatro”, aliás dando origem àquilo que os norte-americanos designam “CNN operas”, tomando matéria noticiosa de actualidade. Seguiram-se o muito controverso The Death of Klinghoffer (alvo de furiosos e cegos ataques por parte de grupos judaicos, quando a obra, sobre o sequestro do paquete Achille Lauro, em nada é uma apologia do terrorismo), El Niño, Doctor Atomic e A Flowering Tree.

Há ainda a notar que, embora nascido na costa leste, Adams se fixou na Califórnia, e a misceginação e inter-culturalidade desse Estado, e até mais em concreto de Los Angeles, é patente em várias das suas obras, como os citados Eldorado e The Dharma at Big Sur, ou ainda El Niño, abrindo-se mesmo às músicas populares urbanas, caso de I Was Looking At The Ceilar And Then I Saw the Sky.

O seu associado de eleição tem sido o encenador e programador Peter Sellars (n.1957), que foi um “enfant terrible” da cena teatral americana. Ele encenou todas as óperas de Adams e nalgumas foi co-autor do libreto. Quando, com apenas 26 anos, foi nomeado director do American National Theatre em Washington, Sellars logo patenteou a sua iconoclastia e capacidades de uma programação inovadora.

Em 2006 foi ele o director do New Crowned Hope Festival, em Viena, por ocasião dos 250 anos do nascimento de Mozart – o nome do festival retomava o da loja maçónica a que o compositor pertenceu. Mas o princípio diferenciador era o de celebrar Mozart com obras novas, tendo ou não analogias com as do comemorado, numa panóplia que foi de óperas, esta The Flowering Tree e La Passion de Simone (Veil) de Kaija Saariaho, passando por Mozart Dances de Mark Morris, até um conjunto de seis filmes, aliás apresentados no Indielisboa em 2007 – e perante os magníficos Syndromes and a Century de Apichatpong Weerasethakui ou I Don’t Want To Sleep Alone de Tsai Ming-Liang não se vislumbra parentesco mozartiano.

Diferentemente, A Flowering Tree, um conto fantástico de origem indiana (e outro exemplo da inter-culturalidade em Adams) tem analogias com A Flauta Mágica, nomeadamente com o par Tamino-Pamina e as provas pelas quais o seu amor tem de passar.

Sabendo-se ainda do alheamento do São Carlos, teatro nacional de ópera, pelo reportório contemporâneo, é verdadeiramente escandaloso que Nixon in China nunca tenha sido apresentado – e já não se fala das outras óperas de Adams pelas suas dificuldades de montagem. Mas, enfim, graças à maestrina Joana Carneiro, que foi assistente do compositor na estreia da ópera, A Flowering Tree subiu agora à cena no Centro Cultural de Belém,em Lisboa, integrada na temporada do São Carlos. E, aleluia, não considerando óperas de autores portugueses, com A Flowering Tree o São Carlos entra finalmente no século XXI. Era mais que tempo.

Joana Carneiro é o elemento decisivo deste notável espectáculo, dirigindo uma esplendorosa realização musical (é difícil de acreditar que são a mesma orquestra e coro que há poucas semanas ouvimos com tão graves problemas na Ifigénia em Táuride de Gluck), confirmando uma vez mais as suas grandes credenciais adamasianas, depois de, nomeadamente, ter já estreado em Portugal esta mesma ópera, mas em versão semi-encenada, na Gulbenkian, ou os maravilhosos Coros dos Palestinianos e dos Israelitas de The Death of Klinghoffer – embora, diga-se, seja redutor e injusto reduzi-la a intérprete de Adams, obliterando as capacidades que já demonstrou com Mahler e Stravinsky.

A encenação de Nicola Raab (contando com a cenografia e figurinos de Georges Souglides e o desenho de luzes de Aaron Black, num trabalho de notórios atributos plásticos) é de grande inteligibilidade, com momentos muitos engenhosos, como o aparecimento do elefante, e mesmo de grande beleza, no final do Acto I e no início do II com a sugestão da árvore em Kumudha se transforma. É no entanto questionável que a gestualidade e a coreografia acentuem tanto o quadro indiano, o que se torna redundante.

Se Jessica River (Kumudha) e Shawn Mathey (o príncipe) mostram grande desenvoltura, o protagonista é Luís Rodrigues (narrador) e é mesmo caso para dizer que, inesperadamente, o barítono tem aqui um dos “papéis da sua vida”.

Globalmente, esta estreia cénica de John Adams em Portugal é um espectáculo triunfante a que urge assistir, com 2ª e última récita esta sexta-feira.

 

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