Impasse político na Irlanda força partidos historicamente rivais a entenderem-se

Sem votos suficientes para governar, Fine Gael e Fianna Gáil vão discutir condições para formação de um governo minoritário, mais de cinco semanas depois das legislativas.

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O Parlamento voltou a chumbar nesta quarta-feira a nomeação de Kenny para primeiro-ministro Leon Neal/AFP

Pela primeira vez na história da sua centenária rivalidade – um passado que envolve guerra, intrigas e desconfiança mútua –, os líderes dos dois principais partidos da Irlanda sentam-se à mesma mesa para tentar criar condições para a formação de um governo, cinco semanas depois de legislativas que foram inconclusivas. Nas discussões entre o Fine Gael e o Fianna Fáil não estará uma grande coligação, mas tão só o apoio a um executivo minoritário, instável e com um prazo de validade limitado.

O encontro, previsto para a noite desta quarta-feira, foi antecedido pelo enésimo capítulo do impasse político em que o país vive desde que, a 27 de Fevereiro, os eleitores dispersaram de tal forma os seus votos que nenhum dos dois partidos ficou em condições de formar governo, sozinhos ou com aqueles que seriam os seus parceiros naturais de coligação – os trabalhistas, aliados do Fine Gael no executivo cessante, foram os grandes penalizados pela austeridade imposta a Dublin pelos credores internacionais, elegendo apenas sete deputados.

Pela segunda vez, o Parlamento reuniu-se nesta quarta-feira para tentar eleger, sem sucesso, um novo primeiro-ministro. Nem Enda Kenny, o taoiseach cessante, nem o líder do Fianna Gáil, Micheál Martin, conseguiram mais do que o apoio dos seus deputados, numa votação a que Gerry Adams, chefe do Sinn Féin, apelidou de “charada” sem sentido. “Eles precisam de pôr na cabeça a nova realidade política, em que pela primeira vez na história do Estado [irlandês] nenhum deles poderá controlar nem o governo nem a oposição”, disse o líder dos nacionalistas, que detêm 23 deputados, atrás apenas dos 50 conseguidos pelo Gael e dos 44 obtidos pelo Fianna Fáil.

O encontro entre Kenny e Martin era inevitável desde a noite das eleições, mas foram precisas semanas de negociações infrutíferas com os pequenos partidos e os deputados independentes para que a reunião fosse agendada. Uma ocasião que é histórica: “Nunca houve qualquer negociação formal entre eles na história do Estado, é por isso um cenário completamente novo”, disse ao Financial Times o analista político Eoin O’Malley, da Universidade de Dublin.

Nascidos ambos do Sinn Féin original e partilhando o mesmo espaço ideológico (no centro-direita), os dois partidos definiram a sua identidade lutando em lados opostos da guerra civil que se seguiu à assinatura do tratado com o Reino Unido que, em 1921, abriu caminho ao que é hoje a República da Irlanda. Desde 1932, o governo de Dublin esteve nas mãos ora de um ora de outro, o que cimentou uma rivalidade que só a ameaça de ingovernabilidade do país poderá aliviar, ainda que de forma limitada.

A economia ainda não se ressentiu do impasse – em 2015 o PIB cresceu 8%, acima de qualquer outro país da União Europeia, e a taxa de desemprego ficou nos 8,6% –, mas Dublin teme que a incerteza afaste o investimento estrangeiro em que assenta a recuperação e alimente o descontentamento popular. “Não posso dizer que teremos governo no final da semana ou dentro de 10 dias, mas espero que as discussões que vou iniciar com Martin nos levem nessa direcção”, disse Kenny no final da votação falhada.

A hipótese de uma grande coligação entre os dois partidos – a única capaz de dar ao próximo executivo maioria no Parlamento – parece morta à nascença, dadas as declarações hostis que a mera menção a esse cenário gera em várias facções dos dois partidos. Martin não excluiu, no entanto, um entendimento para que o Fianna Fáil deixe passar um executivo chefiado por Kenny com o apoio de um punhado de independentes. O principal objectivo seria garantir a aprovação do Orçamento para o próximo ano, mas os analistas não acreditam que tal arranjo seja durável ou sequer funcional. “Não é possível ter um governo que pode colapsar em três meses”, disse à Reuters o ainda ministro da Saúde, Leo Varadkar, avisando que Kenny ficaria refém não só da oposição, como dos sindicatos e dos lobbies económicos. “É impossível governar com a espada eleitoral de Dâmocles sobre a tua cabeça.”

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