Só o sótão está a salvo da imundície do mundo

Entre 7 e 24 de Abril, haverá um sótão no palco do Teatro São Luiz onde um grupo de desempregados montará uma expedição ao Pólo Sul. Beatriz Batarda volta aos textos de Manfred Karge, numa defesa do colectivo contra o individualismo do mundo. É tudo uma questão de asseio.

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Seiffert está a ler um livro sobre uns “pobres milionários desempregados” que passam dia e noite a pensar em l’ennui, essa prática sublime do enfastiamento. Seiffert, Braukmann, Büscher e Slupianek estão também desempregados, mas no seu caso a falta de dinheiro não permite que a falta de actividade tenha direito a uma conceptualização, a uma condição poética ou filosófica. Os dias sem nada pesam, nada têm de vitoriosos ou de estéticos, e a proposta que Slupianek coloca em cima da mesa prende-se com a fuga a esse peso. Slupianek também anda ocupado em leituras, um relato heróico da expedição ao Pólo Sul que o norueguês Roald Amundsen comandou com sucesso em 1911. Com o livro nas mãos, Slupianek lê a descrição do momento em que uma tempestade se abate sobre o grupo aventureiro: “Estar deitado durante um dia ainda pode saber muito bem, mas dois, três, quatro dias, ou, como parece ser agora o caso, cinco, não, é insuportável.” A alternativa para os cinco de Amundsen seria avançar, mesmo que em terríveis condições, proposta acolhida com entusiasmo e aclamação. Slupianek sugere o mesmo aos seus três amigos desocupados: uma expedição ao Pólo Sul.

Enfim, não exactamente o mesmo porque a replicação do feito de Amundsen nunca sai do sótão da casa de Braukmann, e é reavivada apenas nos momentos em que, por sorte, a roupa não esteja estendida a secar. O investimento na expedição soa então a recusa de uma realidade asfixiante, da construção de um lugar fantasista em que caminham os quatro na direcção de um horizonte bem mais glorioso do que a próxima visita ao centro de emprego. O sótão, lugar de armazenamento e arrumação daquilo que pouca falta faz ao dia-a-dia, poderia até trazer consigo a evidência de que todo o sonho é inútil. Mas Beatriz Batarda, encenadora do texto escrito pelo alemão Manfred Karge em 1985, pouco antes da queda do Muro de Berlim, lembra que Karge dizia em entrevista que este sótão “é o único sítio que está imaculado da porcaria do mundo”. “É o lugar puro, protegido, o haven – do ponto de vista do autor.”

Daí que também “a Braukmann”, a mulher do anfitrião Braukmann e que empurra o marido no sentido de um emprego que ajude a pôr de pé uma família, recorde também a sua infância naquela casa e o sótão como o “sítio onde o pó do carvão não chegava onde queria” e onde a mãe se dedicava às lavagens e às limpezas. Lavava as roupas do pai e escondia por detrás do espelho um postal com uma montanha coberta de neve. “Branco, tudo branco”, isso sim era algo que valia a pena alcançar. A Braukmann, herdeira das limpezas, chega a casa, despe-se e esfrega-se com limão. Para se certificar que a imundície do mundo não tem cabimento dentro de casa. “Comparado com o que está lá fora”, diz o actor Nuno Lopes (o pessimista Büscher na peça), “até o sótão é limpo”. E acrescenta: “A nossa viagem é uma saída para pessoas que não têm saída – a não ser a ficção.” E é uma saída colectiva por oposição ao caminho individualista de Rudi, o amigo “contaminado, manipulado e envenenado” pelos media, segundo Batarda, e que Nuno Nunes compôs num modelo de capitalismo alarve inspirado em Donald Trump, para quem uma ida ao Pólo Sul é apenas mais uma linha no extracto do cartão de crédito.

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A construção em conjunto
Em 2012, o encenador inglês Stephen Unwin regressou a este Pólo Sul, lugar longínquo e no qual se pode projectar livremente uma ideia de conquista, a este texto de Manfred Karge que tinha já levado a palco nos anos 1980. Na sua primeira abordagem, fora decisivo o contexto social e político da passagem de Margaret Thatcher pelo assento do poder no Reino Unido. Na sua recente revisitação, confessou Unwin em entrevista, foi a sua crença de que alguns dos sintomas do thatcherismo – “níveis recorde de desemprego de longo termo entre os jovens, folgas fiscais para os muito ricos, assim como os ataques thatcheristas aos jovens desempregados acusados de serem parasitas de subsídios”, especificou – haviam voltado a eclodir a guiar-lhe a encenação. Beatriz Batarda assistiu em Inglaterra à reposição em 2012, onze anos depois de o próprio Unwin lhe ter oferecido uma edição de duas peças de Karge.

A primeira, o monólogo De Homem para Homem, foi interpretado pela própria Batarda no Teatro da Cornucópia, em 2008, numa encenação de Carlos Aladro, tendo desde essa altura ficado com A Conquista do Pólo Sul “atravessada no goto”. “E perante as circunstâncias infelizes da nossa querida Europa”, justifica, “pareceu-me mais do que pertinente revisitá-lo.” Em comum com De Homem para Homem, uma peça em gradual perda de humanidade e acentuado vazio, a encenadora vislumbra agora um avanço “na direcção da solidão”. “E isso não tem que ver com individualismo, não significa que temos de viver de uma forma individualista. Penso que esta trupe descobre isso, confronta-se com a sua solidão mas descobre redenção na possibilidade da construção em conjunto.”

Seduzida pela variedade de linguagens a que recorre o actor, encenador e dramaturgo vindo do Berliner Ensemble, vogando “entre o verso e a prosa, a linguagem mais elevada e a mais coloquial” e “a forma como a música entre na nossa vida, trabalha o nosso subconsciente e revela a nossa alma”, Beatriz Batarda foi depois construindo e explorando com os actores a dimensão do teatro dentro do teatro contemplada na sombra brechtiana habitual na família do Berliner Ensemble – e que ultrapassa a mera história de desgraçados depositários de toda a sua fé num acto de ilusão desesperada, como que rompendo deliberadamente amarras da realidade. “Talvez por ter nascido num teatro particular, o Teatro da Cornucópia, e ter sido muito influenciada pela convivência e pela experiência com o Luis Miguel Cintra e a Cristina Reis, que determinaram completamente o meu olhar sobre o teatro”, explica a encenadora, “não desamo a desconstrução mas só me faz sentido em diálogo com a ilusão. O desencantamento pelo desencantamento desanima-me particularmente.”

Em cena, na peça que o Teatro São Luiz (Lisboa) acolhe entre 7 e 24 de Abril, estão sempre duas visões da vida, uma idealista e esperançosa, outra derrotista e crente de que o mundo teria de ser totalmente arrasado para que a salvação pudesse existir. Duas visões que ressoam naturalmente numa peça à beira da viragem histórica, num país dividido entre capitalismo e comunismo prestes a deitar abaixo as suas fundamentais diferenças. Mas, mais do que isso, A Conquista do Pólo Sul, na expedição de Beatriz Batarda, lançada como vertigem de camaradagem em que “todos são uns estupores, cruéis uns com os outros”, em que “tudo é muito infantil e desconectado da dor da sua realidade”, desacelera depois e estaca a sua bandeira num lugar final de humanidade.

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