Gideon Bachmann: “Quando todos têm uma câmara, o cinema deixa de ser especial"

Fotógrafo, cineasta, crítico, professor, Gideon Bachmann esteve presente em alguns momentos chave do cinema do século XX. As suas fotos de cena de Oito e Meio de Federico Fellini estão em Lisboa

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“Tirei, não sei, umas oito mil fotografias durante a rodagem” DR

“Detesto esta coisa de rodar filmes e tirar fotografias com os telemóveis.” Podia parecer uma irritação de velho do Restelo - que até se perceberia em Gideon Bachmann, 89 anos, cineasta, fotógrafo, crítico, editor, escritor, arquivista, cidadão do mundo. Afinal, Bachmann, nascido na Alemanha e sucessivamente habitante de Israel, dos EUA, de Itália, viveu de perto o movimento do cinema underground americano do pós-guerra e, depois, os anos de ouro do cinema de autor europeu – e não tem pejo em dizer que o vídeo “matou” as possibilidades de câmara.

Mas, ao telefone da sua casa, explica rapidamente o porquê da sua irritação: “Quando toda a gente tem uma câmara e pode filmar tudo e toda a gente, o cinema deixa de ser algo de especial. Não acredito que a câmara registe uma imagem do que existe naquele momento, como os media modernos defendem. Acredito que a câmara cria uma imagem própria, mostra algo que não estava lá antes, revela algo que esteve lá ou podia lá estar.”

É por isso que há algo de especial nas fotografias que Bachmann tirou durante a rodagem de Oito e Meio de Federico Fellini em 1963, e das quais uma pequena selecção de perto de uma centena estará patente ao longo da edição 2016 da 8 ½ Festa do Cinema Italiano (em Lisboa, nos cinemas São Jorge e UCI El Corte Inglés e no Instituto Italiano de Cultura, até ao próximo dia 7). “Tirei, não sei, umas oito mil fotografias durante a rodagem”, diz Bachmann, “mas são todas de coisas que aconteciam no plateau, não de cenas do filme. Sempre estive mais interessado nas pessoas que faziam os filmes do que nos filmes que elas faziam.”

A relação entre Bachmann e Fellini começou quando se conheceram em Nova Iorque em finais dos anos 1950; em 1962, o fotógrafo instalou-se em Roma a fim de escrever um livro sobre o cineasta que nunca se materializou, mas que levou Bachmann a acompanhar as rodagens seguintes do cineasta, como Oito e Meio, Julieta dos Espíritos e Satyricon. Para a televisão sueca, Bachmann filmou as rodagens deste último em Ciao, Federico! (1971), um dos três filmes que diz ter feito “exactamente como os quis”. Os outros dois são “Underground New York [1968, Leão de Prata em Veneza] e Jonas [1968], sobre Jonas Mekas, com quem fui à escola.”

Precisamente: pelo meio das suas actividades de crítico, radialista ou fotógrafo (para a revista Life) empenhado na divulgação da arte cinematográfica, Gideon Bachmann viveu de perto a emergência do cinema underground nova-iorquino, tendo estudado com Mekas sob Hans Richter no City College e servido como director do cine-clube Group for Film Study. Underground New York é precisamente sobre esse novo cinema americano, “um movimento por si só que nunca chegou a ter uma influência muito importante no cinema mundial. Os europeus olhavam para eles como uma curiosidade, uma excepção, e os americanos viam-nos como uma coisa amadora, que só começou a ser levado a sério quando a Shirley Clarke começou a fazer longas-metragens com esses métodos.”

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Bachmann não enjeita o seu papel de “ponte” entre momentos importantes da história do cinema do século XX, mesmo que de um período muito específico: “Sinto-me privilegiado, mas o meu interesse foi sempre mais nos realizadores, nos artistas, do que nos filmes. Estou interessado no modo como os seres humanos vivem a sua vida, sobretudo nas pessoas que tentam fazer algo de especial, diferente, para se encontrarem a si próprias.”

Com tanta coisa que fez, tanta viagem e actividade, Bachmann prefere definir-se como “um pesquisador, alguém que gosta de descobrir como as coisas se ligam umas às outras”. Os cineastas com quem criou relações mais próximas – Fellini, Pier Paolo Pasolini, Andrei Tarkovski - eram também eles pesquisadores, buscando um cinema que o alemão define como “pós-câmara”: “filmes que só existem depois de a câmara os criar, onde ela cria uma nova realidade”, por oposição ao cinema “pré-câmara” onde se filmava uma realidade pré-existente. “Sim, Tarkovski era definitivamente um cineasta pós-câmara,” explica o fotógrafo, “e Fellini também. Pasolini não muito, porque apesar da espontaneidade existente no plateau ele criava antes a realidade que a câmara iria registar. O cinema pré-câmara tira uma imagem do que se criou antes, uma peça, uma acção; o cinema pós-câmara é algo que abre portas para uma outra realidade.”

É também por isso que as suas fotografias de Oito e Meio – parte de um imenso arquivo que Bachmann legou à associação cultural Cinemazero de Pordenone, responsável pelas Jornadas do Cinema Mudo  – reflectem menos o filme que Fellini fez do que o seu olhar sobre o que se passava: “Tentei sempre incluir o processo criativo nos meus filmes e nas minhas fotografias. Costumava ir para os plateaux com a câmara e sem ideias pré-concebidas, sem saber o que ia rodar. Podia fazer o que queria, registar o que ia acontecendo de que eu não estava à espera: aquilo de que eu estava à procura, mas que só aparecia porque eu estava ali…”

 

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