Governo não aceita que se alegue falta de vagas para não acolher uma criança em risco

Cada uma das mais de 300 comissões de protecção de crianças do país vai ser reforçada com um técnico superior a tempo inteiro este ano, diz secretária de Estado Ana Sofia Antunes. Nova comissão nacional reuniu pela primeira vez, oito meses depois de ser criada.

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Ana Sofia Antunes diz que "falhas de articulação" deixam mais vulneráveis as crianças sinalizadas como estando em risco Daniel Rocha

Depois de analisar os casos mais mediáticos dos últimos meses, que envolveram maus-tratos e até a morte de crianças, a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, tem uma certeza: “Em nenhuma destas situações eu posso apontar o dedo ao funcionamento de alguma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ). Fizeram o seu trabalho e fizeram-no bem feito.” O que falhou, diz, aconteceu depois de os processos de protecção dos menores terem saído “do seio das CPCJ”, nomeadamente quando passaram para a esfera dos tribunais. “Falhou a articulação do sistema daí para a frente, uma falha que deixa muitas vezes as crianças em situação de vulnerabilidade.”

Em declarações ao PÚBLICO nesta quinta-feira, dia em que a nova Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) esteve reunida pela primeira vez, oito meses depois de ter sido criada no papel, Ana Sofia Antunes é categórica: “Não podemos ver repetidas alguma situações que vimos acontecer nos últimos meses, com as Equipas de Crianças e Jovens [da Segurança Social] que acompanham os tribunais a recomendarem que a criança seja retirada à família e acolhida, o juiz a aceitar e a determinar que seja encontrada uma vaga [num centro de acolhimento] e alguém responder que não há vaga.”

Sem citar nenhum caso concreto, a governante diz que, simplesmente, tem de haver vaga. “Tem de haver uma resposta mais rápida. Se se define que a criança tem de ser retirada, tem de se encontrar imediatamente um sítio onde seja acolhida em segurança e com dignidade.”

Mas não há falta de instituições de acolhimento no país? Não, responde. “O que acho é que é preciso gerir melhor as vagas que temos.”

Em 2014, último ano para o qual há dados, havia 8470 crianças em instituições de acolhimento, das quais 2143 foram retiradas nesse ano às famílias.

É preciso ainda, prossegue Ana Sofia Antunes, rever a composição das Equipas de Crianças e Jovens, “que são quem acompanha os processos das crianças na fase em que eles passam para a esfera do Ministério Público” e, provavelmente, “reforçar um pouco as competências destas equipas” e “melhorar a articulação e a transmissão de informação das CPCJ para essas equipas”.

Recorde-se que as CPCJ só têm competência para acompanhar as crianças com o consentimento das famílias. Quando ele não existe (ou quando deixa de existir), os processos passam para os tribunais; isso também acontece sempre que há suspeitas de abusos sexuais.

Em 2014, as CPCJ acompanharam 73.019 processos de crianças, entre novos e transitados de anos anteriores.

“Estas equipas da Segurança Social nos tribunais têm um trabalho imenso, muito administrativo, que muitas vezes não lhes permite fazer um acompanhamento mais directo e prático das situações. É preciso reforçá-las”, acrescenta Ana Sofia Antunes.

Se o problema está diagnosticado, quando vai haver reforço? “Neste momento não consigo avançar nenhuma medida concreta em relação a isso, é um trabalho que ainda vou ter de encontrar forma de fazer e de financiar. É uma questão humana e orçamental, claro.”

CPCJ vão ser reforçadas

Já as CPCJ vão ter mais meios, promete. Cada uma das mais de 300 que existem no país vai ser reforçada com um técnico superior a tempo inteiro ainda este ano. “Pelo menos um por CPCJ é o que pretendemos. Estamos a falar de assistentes sociais, psicólogos, professores, técnicos de saúde, perfis muito diversos.” A maioria dos elementos que compõem as CPCJ — que são destacados pelos ministérios da Saúde, Educação e Segurança Social, por exemplo — trabalham nestas estruturas a tempo parcial, acumulando as funções nos serviços de origem, o que é ciclicamente apontado como um problema grave.

A coordenação e avaliação das CPCJ cabem à comissão nacional que, nos últimos meses, tem vivido uma situação de indefinição. Em Agosto foi publicado um decreto-lei que introduziu uma série de mudanças. A nova comissão nacional, com poderes acrescidos, deveria ter começado a funcionar nos 30 dias seguintes. O que se passou? Resposta da secretária de Estado: “O prazo não pôde ser cumprido, como todos compreenderão, por causa do período de instabilidade política que se viveu e da mudança governativa.” Foi preciso que os ministérios se organizassem para nomear os comissários, diz.

O novo diploma não muda só o nome da antiga Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco para o ainda mais comprido Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens. “Para ser franca tenho algumas dúvidas sobre o que está no diploma, sobretudo no que diz respeito às comissões regionais que ele cria”, uma espécie de estruturas intermédias, entre as CPCJ e a comissão nacional.

“Mas, nesta fase, aquilo que me preocupou não foi ver se a lei estava bem ou mal desenhada”, diz a governante. “O que era importante era que a comissão nacional estivesse a funcionar, que estivesse reforçada de meios técnicos e humanos e que estivesse a articular devidamente com os parceiros, com o Ministério Público e com os tribunais, porque a situação estava a ficar delicada”, admite. Uma vez a funcionar, o novo sistema será avaliado e, se for caso disso, sofrerá mudanças.

Na primeira reunião da nova comissão nacional “foram constituídos grupos de trabalho”, explicou ao PÚBLICO o recém-renomeado presidente, Armando Leandro. Segue-se “a instalação das comissões regionais”, a definição do “apoio logístico, financeiro e dos tempos atribuídos às CPCJ [por cada entidade que nelas participam]” e a definição de “planos de formação inicial e contínua” para as pessoas que nelas trabalham.

O novo organismo é constituído por 19 comissários, designados por entidades que vão dos ministérios da Justiça e da Saúde ao provedor de Justiça e Procuradoria-Geral da República. Pela primeira vez há também elementos designados pelo Ministério da Administração Interna, pela Secretaria de Estado da Juventude, pela Confederação Nacional das Associações de Pais e pelo Conselho Nacional de Juventude. O presidente foi nomeado pelo primeiro-ministro.

A comissão nacional passa a ter um orçamento próprio — 11 milhões de euros este ano, segundo Ana Sofia Antunes, mais cerca de um milhão do que no ano passado. Foi, diz, o possível.

Armando Leandro designado para o 5.º mandato

O despacho que nomeia o juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça jubilado, Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens foi assinado nesta quarta-feira pelo primeiro-ministro, António Costa, mas ainda não foi publicado em Diário da República.

Desde 2005 que Armando Leandro, 81 anos, tem sido sucessivamente designado para esta missão. Este será o seu quinto mandato à frente do organismo que coordena as CPCJ. “O senhor juiz é a melhor pessoa, dá-me uma tranquilidade muito grande no exercício desta missão porque tem um conhecimento ímpar destas matérias. É a pessoa ideal para assegurar este processo de transição” para a nova comissão nacional, criada pelo novo quadro legal publicado pelo anterior Governo, diz a secretária de Estado.

Armando Leandro desempenhou, entre outras, as funções de delegado do Procurador da República, juiz de Direito e director do Centro de Estudos Judiciários. Publicou vários trabalhos ligados ao Direito de Menores e de Família e formação de magistrados, foi também coordenador nacional do Projecto Vida (prevenção da toxicodependência) e presidente da Assembleia-Geral da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

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