Belém: uma questão de valores, mais do que de valor

Esteve bem António Lamas em sublinhar no Parlamento a prioridade que deve ser dada à discussão do seu plano para Belém-Ajuda e não tanto às circunstâncias deploráveis da sua demissão. E honra lhe seja feita, ele foi desde o início claro em dizer ao que ia: não ser o “presidente liquidatário do CCB” (entrevista ao Publico, em 19.11.2014) e pelo contrário construir cidade a partir dele, dando corpo a um oásis de vida urbana, planeado e gerido com espírito iluminado, quase em condomínio fechado. Como antes fizera em Sintra, pouco lhe importava o País no seu todo e não hesitava em afirmar que “a redistribuição entre os Jerónimos e Freixo de Espada à Cinta não faz sentido.” Concebia, pois, uma política nacional de património cultural composta por umas quantas ilhas de abundância, onde fosse possível criar valor – curiosa dicotomia esta entre “valor”, entendido como criação mercantil de riqueza usada privadamente nos locais onde se gera, e “valores”, entre os quais o da solidariedade nacional. Ora, o conjunto monumental e museológico de Belém-Ajuda é por excelência o mais nacional dos bens e, já agora, contribui com cerca de 2/3 das receitas próprias da tutela do património cultural (talvez mais, até porque o actual Governo já cometeu a proeza de lhe ter diminuído o orçamento).

É, pois, no seu próprio terreno que a visão de António Lamas pode e deve ser contestada, sem isto querer dizer que não tivesse razão em muito do que observava, sendo certo que Belém precisa levar uma grande volta, urbana e de gestão patrimonial. O seu plano podia até ajudar (não obstante o seu carácter vago, onde o mais importante parece estar escondido, sendo tudo servido por linguagem tão empresarial que chega a ser irritante). Mas faltava-lhe a humildade de perceber o essencial, ou seja, que os monumentos e museus são projectos cívicos destinados a servir os cidadãos (não os consumidores, mesmo quando turistas endinheirados) e que estes se representam, no plano social, pelo movimento associativo do património, e no plano político, pelos poderes políticos democraticamente instituídos, dos quais o autárquico é decisivo em matéria de construção de cidade. Faltava-lhe ainda uma última e pequena coisa: ter presente que a tal “redistribuição entre os Jerónimos e Freixo de Espada à Cinta” não apenas faz sentido como constitui a base do nosso contrato nacional, velho de quase nove séculos.

Arqueólogo

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