Imre Kertész (1929-2016), o rapaz de Auschwitz que recebeu o Nobel da Literatura

Autor de uma das mais poderosas evocações literárias do terror nazi em Sem Destino (1975), o escritor húngaro morreu em Budapeste aos 86 anos

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O escritor na Feira do Livro de Frankfurt em 2006 AFP PHOTO / JOHN MACDOUGALL
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No Museu Judaico de Berlim em 2008 REUTERS/Marcel Mettelsiefen
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Com a mulher no Museu Judaico em 2008 REUTERS/Marcel Mettelsiefen
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Na cerimónia do Nobel em Estocolmo em 2002 AFP
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Com Angela Merkel no parlamento no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto em 2007 REUTERS/Fabrizio Bensch

O romancista e ensaísta húngaro de ascendência judaica Imre Kertész, sobrevivente dos campos de concentração nazis e prémio Nobel da Literatura de 2002, morreu às quatro da manhã desta quinta-feira em Budapeste, após um longo período a sofrer da doença de Parkinson. Tinha 86 anos e deixa uma obra não muito extensa, estreada em 1975 com Sem Destino (Sorstalanság, 1975), o seu livro mais conhecido, que descreve o quotidiano de Auschwitz através do olhar de um rapaz de 14 anos, György Köves, que se conforma com a sua nova existência e encara com naturalidade, e até com algum apreço, as degradantes condições de vida no campo. 

A trágica odisseia de György é de algum modo a de Kertész, embora o escritor várias vezes tenha precisado que optou pelo romance autobiográfico mas não pretendeu escrever uma biografia. “Quando pondero escrever um novo romance, penso sempre em Auschwitz, mas isso não quer dizer que Sem Destino seja autobiográfico em qualquer sentido mais óbvio do termo”, avisa o autor.

Kertész deve o Nobel essencialmente a este livro, que veio a ser adptado ao cinema em 2005, num filme de Lajos Koltai, mas que foi acolhido com um gelado silêncio na Hungria comunista de 1975, a cujas autoridades não terá passado despercebido que o iludido rapaz de 14 anos vivendo quase feliz no terror totalitário de Auschwitz podia bem ser tomado como uma embaraçosa metáfora do cidadão húngaro comum, resignado à tutela soviética que fora reinstaurada à força de tanques em 1956.

Nascido em Budapeste, em 1929, numa família de ascendência judaica plenamente integrada na sociedade húngara, Imre Kertész tinha apenas 14 anos quando foi deportado para Auschwitz, na Polónia, em 1944. Sobreviveu ao campo de extermínio e foi transferido para Buchenwald, no leste da Alemanha, onde ainda se encontrava quando o campo foi libertado, em Abril de 1945.

Esta experiência de viver literalmente “sem destino”, que condensou no título do seu primeiro romance, durou cerca de um ano, mas foi vivida como se fosse para sempre, e acabaria por selar irrevogavelmente o destino de um escritor que, em certo sentido, escreveu sempre o mesmo livro e tratou um só tema: o que é o indivíduo num contexto totalitário que o priva radicalmente do uso do livre arbítrio?

A passagem pelos campos nazis alimenta tudo o que escreveu, mas Kertész esperou bastante até se decidir a deixar o seu testemunho de Auschwitz, levou 14 anos a escrever Sem Destino, e só conseguiu publicar o livro em 1975, numa pequena chancela, e depois de o ver rejeitado por uma editora estatal. Dificuldades muito semelhantes às que enfrentou Primo Levi, autor do único livro sobre Auschwitz ainda mais célebre do que o de Kertész, Se isto É Um Homem, também publicado por uma editora modesta após recusa da Einaudi.

Kertész evocará mais tarde as peripécias editoriais de Sem Destino no romance A Recusa (A Kudarc, 1988), protagonizado por um escritor de meia idade que espera ver recusado o original que escreveu sobre Auschwitz enquanto vai retratando a claustrofóbica sociedade húngara em que vive num romance de assumido recorte kafkiano. Muitos têm sido aliás os críticos que aproximam o György Köves de Sem Destino do Josef K. de O Processo, unidos na aceitação de uma lei absurda.

Na obra do autor húngaro, A Recusa é vista como o segundo momento da trilogia iniciada com Sem Destino e depois completada, em 1990, com Kaddish para uma Criança que não Vai Nascer, originalmente publicado em 1990. Mas o próprio Kertész já se referiu a Aniquilação (2003), livro cuja acção decorre no momento da democratização da Hungria, em 1989, como o seu “último romance sobre o Holocausto”, argumentando que trata de uma segunda geração que já não viveu o terror nazi, mas continua a ter de lidar com a sua memória.

Estes quatro livros, todos eles traduzidos directamente do húngaro por Ernesto Rodrigues, estão editados em Portugal, os três primeiros na Presença e o último na Ulisseia. Na Presença saiu ainda Um Outro – Crónica de Uma Metamorfose (1997), o segundo de quatro volumes (o último acabou de ser lançado na Hungria) em que o escritor recolhe parcialmente o diário que manteve desde o início dos anos 60.

Em 2012, quando tinha publicado já dezena e meia de títulos, que incluem ainda várias compilações de ensaios e discursos, o autor anunciou que decidira deixar de escrever, argumentando que já dissera tudo o que tinha a dizer sobre o Holocausto.

Adorno e Spielberg

Ao contrário de outros escritores que passaram pelos campos nazis, Kertész recusa-se a ver no Holocausto uma espécie de maligna singularidade, monstruosamente única na história do Ocidente. Daí que apode de kitsch a abordagem de Spielberg em A Lista de Schindler. E no seu K. Dosszié [Dossier K.], de 2006, um romance construído como uma espécie de diálogo platónico, insurge-se mesmo em termos violentos contra a célebre declaração de Theodor Adorno de que “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro”, considerando a frase “uma bomba de mau cheiro moral, que polui desnecessariamente um ar que, tal como as coisas estão, já é rarefeito que chegue”.

Quando lhe atribuiu o Nobel da Literatura em 2002 – foi o primeiro escritor húngaro a recebê-lo –, a Academia Sueca considerou que, a par do livro de Primo Levi, Sem Destino é “é certamente o relato literário mais poderoso já escrito sobre a realidade num campo de concentração”.

Uma força que não reside apenas em Kertesz se ter “decidido resolutamente” pelo romance em detrimento da autobiografia, como ele próprio diz, mas também na arriscada opção de mostrar o campo pelos olhos de um rapaz que é judeu mas não se sente judeu e para quem, salienta ainda o comunicado da Academia Sueca, "todas as situações são genuinamente novas, num agora sem o conhecimento retrospectivo que nós possuímos”.

Como provavelmente o jovem Kertész, György não fala ou lê hebraico, sabe pouco sobre o judaísmo e não simpatiza particularmente com os seus conterrâneos judeus, descontada uma vizinha “cujas formas começam já a arredondar-se sob a sua estrela amarela”, lê-se em Sem Destino.

Em Auschwitz, György mergulha num mundo em que praticamente tudo o que lhe acontece escapa ao seu controle e não depende de qualquer escolha sua, mas aceita a sua nova vida sem a questionar, e até com um certo gosto. E é paradoxalmente essa naturalidade com que se adapta, não tanto ao seu destino, mas à circunstância de não ter nenhum, conseguindo viver em Auschwitz momentos de genuína felicidade, que o salva, preservando a sua personalidade individual da desumanização nazi.

E quando György, finalmente libertado, regressa a Budapeste, no momento em que o horror dos campos começa a ser conhecido em toda a sua extensão, apavora-o a consciência de que não havia afinal qualquer racionalidade na experiência que viveu, e é com uma escandalosa nostalgia que recorda os dias de Auschwitz, onde “a vida tinha sido mais clara e mais simples”.

Uma ambiguidade que o autor assumirá mais tarde em entrevistas, como a que deu à revista americana Newsweek em 2002, na qual explica que “enquanto crianças temos uma certa confiança na vida, e quando acontece algo como Auschwitz tudo se desmorona”, mas acrescenta que viveu os seus “mais radicais momentos de felicidade” no campo de concentração. “Não imagina o que é ter um intervalo de dez minutos num trabalho que não pode descrever-se”, justifica-se a um entrevistador previsivelmente chocado com a sua confissão.

Regressado a Budapeste no pós-guerra, Kertész trabalha como jornalista, mas é despedido em 1951, quando o seu jornal adopta a linha do partido. Depois de cumprir dois anos de serviço militar, passa a sustentar-se traduzindo para húngaro autores de língua alemã, como Nietzsche, Freud ou Wittgenstein.

Quer a publicação de Sem Destino, no qual começara a atrabalhar em 1960, quer os livros subsequentes são recebidos com indiferença na Hungria, e só a partir de 1989, com a viragem democrática, é que a sua obra começa a ganhar relativa notoriedade no seu país e na Alemanha, vindo a ganhar vários prémios importantes ao longo dos anos 90.

Kertész dirá por essa altura que Sem Destino é “sobre o regime de [Janos] Kadar”, o líder pró-soviético que liderou o país de 1956 a 1988, e que “quem quer que vivesse na Hungria dos anos 70 teria de reparar que o autor conhecia o presente e o desprezava”.

Em 2001, muda-se para Berlim com a sua segunda mulher, uma das circunstâncias que ajudam a justificar as reacções discordantes que a sua escolha para o Nobel, no ano seguinte, provocaria nos meios culturais húngaros. Tensões agravadas por uma polémica entrevista ao jornal alemão Die Welt, em 2009, na qual Kertész se assume como “berlinense” e diz que Budapeste está “completamente balcanizada”. Mas em 2012, sofrendo já de Parkinson, regressa à sua cidade natal, onde permaneceu até à sua morte.

Convicto de que os tempos modernos coincidem com uma acelerada degradação do humano, a sua perspectiva pessimista é fundada na sua trágica experiência pessoal, mas também bebida em Schopenhauer e Nietzsche ou nos existencialistas franceses, como Sartre e Camus. Em Sem Destino, "perpetradores e vítimas preocupam-se com problemas práticos e as grandes questões não existem", notaram os académicos suecos quando deram o Nobel a Kertész, vendo no livro a mensagem de que "viver é conformar-se", o que aproximaria o autor, argumentam, duma “tradição filosófica que encara a vida e o espírito humano como inimigos ”.

com Isabel Salema

 

 

 

 

 

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