A dança que existe antes e depois de uma fotografia

A partir da sugestão da fotografia de Cartier-Bresson, António Cabrita e São Castro imaginam como se pode imprimir a dança – nos bailarinos e no público. Rule of Thirds, 1 e 2 de Abril na Culturgest, afirma a dupla no lugar de coreógrafos.

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FOTO: Susana Per

 

Primeiro, são três corpos estáticos, de olhar perdido algures fora de cena, três corpos a tentar tornar-se uma fotografia, a tentar ser um instante de realidade imperscrutável captado por Henri-Cartier-Bresson em Berlim, 1962, diante do recém-erguido Muro. Não vemos o que eles vêem – apenas os observamos no seu próprio posto de observação. E assim se deixam ficar, numa resistência ao movimento que, com o avançar dos segundos, vai sendo traída por gestos mínimos, um piscar de olhos mais vincado, uma respiração mais pronunciada, uma pequena instabilidade causada pela subtil transferência do peso de uma perna para outra. Estabelecida a impossibilidade da inacção absoluta num espectáculo de dança, Rule of Thirds avança para uma outra convocação da fotografia e, em especial, das pistas sugeridas pela bíblia adoptada pelos bailarinos e coreógrafos António Cabrita e São Castro – autores desta peça para quatro intérpretes –, na forma de uma edição generosa do trabalho de Cartier-Bresson.

Depois de terem tomado de empréstimo a obra de Shakespeare para a criação de Play False, pensando em como a palavra podia mediar a sua relação em palco, António e São criam agora o segundo capítulo de um tríptico que se completará com uma coreografia dedicada à música. Na sua relação com a imagem, e com a fotografia especificamente, partem da captação de um momento, sem especial contextualização, para imaginar o antes e o depois que se pode extrair de cada avulsa pista narrativa. Nas fotografias de Cartier-Bresson há esse curioso gatilho da imaginação – cada instantâneo que capta o presente, estende de imediato uma passadeira para o passado e o futuro, deixando-nos sempre a caminho de qualquer coisa. O que funciona como convite para o desencadeamento do universo poético com que o duo gosta de ocupar o palco.

A descoberta do que pode ser a dança a partir do disparo fotográfico, defende São Castro, começa mesmo pela história suscitada pela visualização de uma imagem, “mesmo que não seja aquela que esteja lá ou que aconteceu”. “Tentamos criar essa história principalmente para conseguirmos trazer esse lado humano”, diz, comparando esse processo à revelação fotográfica em laboratório que, aos poucos, vai imprimindo no papel a captação de um momento e desvendando as suas sombras e os seus detalhes. “E a fotografia, em oposição à dança, não é efémera, fica para sempre, embora seja apenas um centavo de segundo da vida”, acrescenta António. “Quando olhámos para isso até de uma forma mais prática, achámos o desafio incrível. Como é que vamos tocar este assunto? Como é que conseguimos imprimir a dança?”

Essa tentativa de imprimir a dança nos seus corpos mas também no público, perceberam aos poucos, só pode ser alcançada através da repetição, enquanto única arma de combate ao efémero. Algo que, nota Cabrita, acaba por remeter em simultâneo para o próprio processo de aprendizagem da coreografia por parte de um bailarino, imprimindo-se, dessa forma, na memória visual do público mas também na memória física do intérprete. “É isto a dança”, acreditam passar na direcção do público. Vê-se a dança e, ao mesmo tempo, o tempo da sua construção.

A aparente contradição dos processos – a fotografia eternizando um único momento, a dança repetindo-o angustiada para que esse momento não se extinga – encontra, no entanto, um ponto de tangência que António e Cabrita exploram conscientemente. Esse instante “verdadeiro” da fotografia pode, naturalmente, ser encenado, pelo que a limpeza constante da frase coreográfica, corrigida após sucessivas microafinações até adquirir a forma como vai ser vista, pode ser entendida como a mesma manifestação de controlo sobre a disposição final. Mesmo se, diz Cabrita, “a fotografia do Bresson é ao contrário, ele não compõe; apenas parece que compõe”.

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FOTO: Susana Per

Cartier-Bresson funciona, no entanto, como um ponto de partida e não como um molde que os coreógrafos aceitam e dentro do qual se propõem existir. O fotógrafo aponta o caminho apenas na justa medida em que não os obriga a seguir por onde a sua intuição não quer ir. Sendo “uma homenagem a Henri Cartier-Bresson”, explicam, “não é sobre ele, da mesma forma que Play False não era sobre William Shakespeare”. Ambas as peças são mergulhos intuitivos, ainda que informados, nos dois universos artísticos. António e São rodeiam-se das obras, demoram o olhar, lêem, interpretam, relacionam-se e enchem a cabeça de ideias que depois destapam sem julgar ou obrigar-se a cumprir. “Acho que é importante”, finaliza o coreógrafo, “resgatar algumas figuras que têm um grande valor e são uma grande referência e fazer isso como aprendizagem.” Uma opção que pretende estabelecer pontes com o passado e não assumir que o presente é lastro suficiente para a criação. “Às vezes descobrimos que estamos exactamente no mesmo lugar, só que em momentos da História diferentes”, defendem. “Claro que o objecto final é outra coisa e é importante que o seja porque vivemos agora; mas estamos ligados à humanidade.”

Corpo em pausa

Embora a intuição mande em muito do que é Rule of Thirds, a verdade é que os dois criadores puxaram para título a designação de um mandamento fotográfico que dita a aplicação de uma grelha virtual para a composição de enquadramentos assimétricos e um posicionamento dos pontos de interesse com uma ambição artística – e não enquanto vulgar foto de família em que a preocupação consiste em não “cortar cabeças” com o disparo do obturador. Se a ideia da composição visual está sempre presente no momento da criação dos dois, este título é sobretudo sugerido pela organização constante em quadros a solo, em duo ou em trio, mas em que os quatro bailarinos só por breves momentos partilham o palco – uma regra que assumiram desde o início – e António Cabrita e São Castro nunca chegam a coincidir em cena – uma regra que surgiu por acidente.

Uma das transposições claras da fotografia para a dança desenvolve-se no segmento solo de São Castro, quando assume a tentativa de “pôr o corpo em pausa” – precisamente o contrário que a dança preconiza. Decompondo o movimento, como se assumisse uma sequência de frames, de vários fotogramas que documentam alguém que avança, São não sai, afinal, do mesmo lugar. Como um avanço que se boicota, algo que poderia sugerir indecisão mas que ambos relacionam com escolha. A escolha de ficar, de não avançar só porque esse seria o sentido evidente da marcha. De escolher o lugar de observador ou de prosseguir com calma, algo que reclamam para o seu percurso a dois desde que, curiosamente, os dois bailarinos se encontraram há cinco anos quando São apareceu a António como curadora de uma exposição de fotografia sua. O primeiro acto da sua parceria, percebem agora, prendia-se com o cruzamento entre a dança e a fotografia, numa peça de vídeo-dança apresentada em 2011 no Festival Add-Wood, em que ela o fotografou a preto-e-branco, frame a frame, para depois ele montar um vídeo em que a montagem empresta o movimento ao corpo.

Daí rapidamente saltam para Wasteland, a primeira criação conjunta, em 2012, colocando a par a relação artística e amorosa, numa peça em que os dois se moviam a um só tempo durante cerca de 40 minutos, até que, no final, São rompia com o uníssono. Depois veio Play False e, em 2015, Tábua Rasa, uma criação a quatro partilhada com Xavier Carmo e Henriett Ventura, bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, em que iam da escala mais íntima à mais universal, questionando a presença de todos os possíveis inícios – uma relação, a infância, a dança, o mundo – presentes em cada corpo.

Em Rule of Thirds, passo da afirmação dos dois como coreógrafos para lá de intérpretes em estreia a 1 e 2 de Abril na Culturgest (Lisboa), voltam a ser quatro, depois de seleccionados Luís Malaquias e Margarida Belo Costa a partir de 160 candidaturas. Luís e Margarida são, aliás, instrumentais na exploração de duas ideias nucleares: a da tensão embalada por uma música de ritmo marcial, botas a avançar compassadamente sobre um palco de guerra e em que Luís dança com a relutância de saber que há na acção uma destruição da poesia; e a da mentira, interpretada por Margarida num solo de sobrevivência afligida que se desfaz com a facilidade de um engano. Como numa fotografia, em que alguém arma o sorriso para enganar um momento de dor, como numa fotografia que nos transporta para um acontecimento trágico e não passa de uma falsificação e manipulação emocional. Até porque, sublinha António Cabrita, a fotografia apenas capta a representação do humano. Julgamos ver pessoas, apenas vemos os seus fantasmas.

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