Invadir Telheiras com as cores do Pacífico

Em John From, duas adolescentes vivem o Verão nas ruas e apartamentos de um bairro despovoado, enquanto sonham com amores e com os mares do Pacífico. E sem muito barulho, João Nicolau vai invadindo Telheiras.

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Em John From, segunda longa-metragem de João Nicolau, duas adolescentes vivem o Verão nas ruas e apartamentos de um bairro despovoado, Telheiras, em Lisboa, enquanto sonham com amores e com os mares do Pacífico. Singular mistura de história de iniciação e mudança de idade, retrato “sociológico” de uma zona definida de Lisboa, e fantasia mais ou menos sobrenatural, John From encontra um território muito próprio – na linguagem do filme, diríamos que é o encontro entre Telheiras e a Melanésia, bairro austero a cobrir-se de cores e objectos exóticos, sem fronteira estanque entre o vivido e o imaginado. Ausência de fronteira que pode corresponder à psique adolescente, mas sobretudo compõe um olhar, sempre justo, melancólico e divertido, sobre duas adolescentes no momento em que se começam a despedir da adolescência e a sonhar com aquilo que lhes vai preencher a vida.

Discreto e sussurrado, falsamente “minimalista”, é um filme com que João Nicolau “não quis fazer muito barulho”.

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É o encontro entre Telheiras e a Melanésia, bairro austero a cobrir-se de cores e objectos exóticos, sem fronteira estanque entre o vivido e o imaginado Nuno Ferreira Santos

John From é um filme de Telheiras, coisa que não existia no cinema português para além das suas curtas-metragens como o Rapace (2006)…
Exactamente… O bairro neste filme é praticamente uma personagem. Manifesta-se de várias formas. Tem um percurso do vazio para o cheio. Na parte inicial do filme quase não há figurantes, e mesmo filmando em Agosto foi complicado conseguir tantos quadros vazios. Há um plano da exposição em que está lá uma senhora mas até me arrependo de a ter posto lá. Depois na parte final enche-se, passa de “décor” a algo que se harmoniza, até mesmo cromaticamente, com os outros aspectos do filme.

Mas evidentemente há uma relação pessoal com o bairro…
E não quero nem posso escapar a isso. Cresci aqui, agora estou a viver aqui outra vez depois de um grande interregno, mas neste filme muito sinceramente aquilo que me interessou foi ter um bairro que tivesse já uma linguagem própria. Nesse sentido, Telheiras, como foi dos poucos bairros planeados de Lisboa, tem um conjunto de características, arquitectónicas e até cromáticas, que corresponde a uma linguagem. E que se aproxima de uma personagem. Por exemplo, há imenso espaço entre os edifícios, o que era importante para a minha ideia de vazio, de estarmos só com a miúda e tudo crescer com ela, e só com ela. E depois há a linguagem arquitectónica, há muitos edifícios iguais ou muito parecidos, como uma variação de módulos, e todas as características cromáticas que são exploradas no filme.

Mas desde o princípio que a ideia foi fazer um “filme de Telheiras”?
Quando parti com a Mariana [Ricardo] para a escrita do argumento, houve duas condições que nos impusemos. Ter um mínimo de personagens principais, e ter um espaço bem delimitado. Este era o princípio. A partir do momento em que tivemos uma história, Telheiras era a hipótese mais simples e mais óbvia. Na pré-produção ainda chegámos a ver outras hipóteses, que seriam sempre “b”.

Falou do “vazio”, que é um aspecto que tem correspondência na vivência emocional das personagens, e no aparecimento da fantasia, a que já voltaremos. Mas essa impressão de “vazio”, tem a ver com a sua experiência pessoal do bairro?
Propus-me vários desafios neste filme. Primeiro, filmar uma protagonista feminina; mas sobretudo desembaçar-me de tudo o que fosse acessório ao centro do filme, que é o momento do despertar da paixão amorosa. Por isso é que ambientei o filme nas férias, para a rapariga nem sequer ter aulas, por isso é que me desembaracei de personagens secundárias, até os próprios pais estão lá para mostrar que o filme não é sobre eles. O que tentei foi confrontar-me o mais possível, em cada plano, com o que de facto me interessava.

Mas em relação a uma vivência pessoal…
Alguma coisa haverá, forçosamente, mas acho que não é muito importante.

É que o “vazio” do filme implica sempre uma vontade de preenchimento, não? Essa é a história da Rita [a protagonista] e no fundo transmite-se ao bairro, como se se pedisse que alguma coisa viesse cobri-lo, como aquele nevoeiro que invade a cena da reunião de condóminos…
Essa pergunta já está a dar respostas… Mas é isso, essa ânsia tem a ver com muitas coisas…

Com a adolescência, por exemplo.
Não foi por acaso que centrei o filme na adolescência. Essa ânsia de preenchimento corresponde aquilo que a Rita procura. Não é só a paixão, é também a amizade e a lealdade. A relação com a amiga  [Clara], por exemplo, todos aqueles códigos da relação entre elas. Tendemos a ver a adolescência como um período selvagem, mas também é marcado por muitas regras. Devo dizer que quando fizemos o casting para o filme não fechámos a idade das personagens. Vimos raparigas dos doze aos vinte anos, preparados para ajustar a história à idade das escolhidas.

Há alguma coisa na relação entre elas, justamente por esses códigos todos, que lembra aqueles buddy movies clássicos, aquelas histórias de camaradagem que normalmente se passavam entre homens.
Eu creio que isso vem do meu filme anterior, Gambozino (2010), que claramente era uma citação do western. Acho que alguma coisa passou para aqui. Tenho pensado, à força de os fazer e de viver com eles, que nos meus primeiros filmes partia do momento em que as regras criadas pelas personagens já estavam inventadas. E nestes dois penso que me interessou sobretudo a transformação das regras. Talvez por isso a primeira parte do filme seja mais naturalista ou realista… enfim, as palavras são sempre perigosas, mas a segunda parte tinha que sugerir uma transformação.

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O filme John From
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Nos seus filmes, e já que falou do Gambozinos, há sempre uma despedida mas também há sempre a invenção de qualquer coisa, de um “mundo”, de certa forma, mesmo que apenas mental. Aqui também, mas o que é mais curioso é que aqui isso se passe de forma muito matter of fact: de um momento para o outro o bairro está invadido de trajes e objectos da Melanésia…
Este filme é obviamente muito construído. As duas actrizes não são, como pessoas, nada do que são como personagens. Aliás isso foi bonito, ver o trabalho das duas, a forma como se aproximaram apesar de terem uma diferença de idades que naquela idade pode ser significativa. Este foi o meu primeiro filme em que o processo de casting também ajudou a definir o filme.

No sentido em que aquilo que as personagens são foi definido por aquilo que as actrizes podiam trazer?
Exactamente. Os ensaios, neste momento, se calhar são aquilo que me dá mais gozo. Ensaio quase como se fosse teatro, sem haver ainda câmara nem nada. Há muitas coisas no filme, coisas físicas, mas também a ver com tempos, que foram elas que inventaram. E não trato os actores profissionais de forma diferente no momento dos ensaios. Acho que é refrescante para eles, assim como é importante para as miúdas estarem em relação com os profissionais.

E foi fácil para os actores profissionais, os que fazem os pais (Adriano Luz e Leonor Silveira), por exemplo, serem remetidos para a condição de vultos, umas figuras que passam e parecem estar sempre a mais?
Foi um pacto que fizemos. Quando os convidei disse-lhes logo que seria um pouco ingrato, e que estariam lá quase para mostrar que o filme não era sobre eles. Mas isto tem a ver com o retrato do bairro e da adolescência no bairro. Os pais saem de manhã para ir trabalhar e voltam à noite. Durante o dia a casa e as ruas são dos miúdos, sobretudo durante as férias. Embora seja secundário, também me interessou dar essa vivência. Que não é exclusiva de Telheiras, mas aqui ainda é um sítio onde os miúdos andam à vontade.

Há uma cena em que a mãe está a ver televisão e depois se vê um excerto dum filme do Kaurismaki. Claro que não é por acaso…
Não, não é… Mas só veio depois, no argumento só estava escrito “a mãe vê televisão”. O filme joga muito com ecrans… aparece o ecrã do ipod, do telemóvel, do Google, quis integrar esses aparatos todos no filme, interessava-me a mistura. Para essa cena, pensei numa coisa que reflectisse o estado de espírito da personagem naquele momento, uma espécie de zombie a vaguear por ali. E lembrei-me desse plano em que o Matti Pellonpaa está sozinho a beber ao balcão, quase como substituição: a miúda não está sozinha a beber ao balcão se calhar porque não tem idade para isso, mas há uma imagem que o faz por ela.

Também não é um realizador que esteja muito longe do seu cinema…
Não… se calhar mais no tom do que no universo…

No tom, aquele semblante de austeridade que não é nada austero…
Nesse sentido não está longe, também me interessou limpar o filme o mais possível, ser o mais despojado possível.

 Aliás, não sei se é uma reacção directa, mas John From é o oposto de A Espada e a Rosa (2013), a sua primeira longa, que era um filme “cheio”, cheio de “coisas”, cheio de peripécias, décores, personagens, etc.
Com este filme não quis fazer muito barulho.

É isso, não se podia ser mais sintético.

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