O caso mais antigo que Maria acompanha é de um miúdo com 13 anos

No dia em que é lançado o relatório anual da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), fomos conhecer uma das técnicas da associação. O seu trabalho é essencialmente ouvir.

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Maria Stilwell trabalha num dos 15 Gabinetes de Apoio à Vítima do país DR

Não anda nestas lides há assim tanto tempo. Mas o tempo voa. O caso mais antigo de Maria Stilwell, 27 anos, é o de um menino que ali chegou com 11 anos e agora já fez 13. No início, andava sempre muito agressivo, com problemas na escola e com os irmãos — uma espécie de dano colateral da violência doméstica. Mas “agora está prestes a ter alta”, porque há muito que não vive numa casa onde as agressões façam parte dos dias. Está mais calmo, conta a sorrir.

Maria Stilwell trabalha num dos 15 Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV) da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) que existem no país. Este, onde nos recebe, funciona em Santarém, em duas salas num piso térreo que pertence ao edifício da ex-Escola Prática de Cavalaria, todos os dias, das 14h às 19h. No dia em que o PÚBLICO o visita, é véspera de feriado nacional, não há movimento. Mas quando há, as pessoas tanto aparecem a bater à porta, como telefonam (para além da rede nacional de gabinetes, a APAV gere ainda duas casas de abrigo e a Linha de Apoio à Vítima, o 116 006).

Para além dos pontuais, há os utentes habituais, que são acompanhados ao longo do tempo, às vezes até um ano ou mais — “Vítimas de violência doméstica, mulheres, sobretudo, e os filhos delas, que umas vezes são vítimas directas”, o que significa que também foram agredidos fisicamente, “outras vezes vítimas indirectas”, assistem e sofrem.

Prossegue Maria: “Aqui há mulheres jovens, mas mais ainda mulheres de 50 anos, de 60 anos. Muitas nunca trabalharam, sempre cuidaram dos filhos, ficaram em casa, estão dependentes economicamente dos maridos, ficam muito aflitas. Muitas sempre foram agredidas pelos maridos, mas chegou a um ponto... fartaram-se. Os filhos estão maiores, eles próprios já pedem para elas porem ponto final. Mas, às vezes, elas desistem. Vêm cá, dizem que querem divorciar-se, mas depois não vêm mais, não dizem mais nada, não atendem o telefone.”

A técnica, solteira, sem filhos, diz que nunca critica, mas admite que às vezes é difícil (“sobretudo quando há crianças”). Algumas mulheres explicam-lhe que mesmo com as agressões têm boas memórias dos maridos. “E digo: ‘Mas que boas memórias, conte-me algumas.’ E elas começam a pensar e ‘se calhar... na verdade, estive sempre sozinha, e quando ele vinha, vinha assim...’ e se calhar não há tão boas memórias assim.” O seu maior pesadelo é que algum dia algum dos casos que por aqui passam acabe em tragédia.

E Maria, como veio aqui parar? Aos 18 anos, foi trabalhar num orfanato, no Equador, como voluntária. Nessa altura já sabia que queria ser psicóloga. Mais tarde foi para outro orfanato, mas na Costa Rica. Quando voltou, concluiu o mestrado em Psicologia Clínica e ofereceu-se como voluntária na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), onde esteve um ano e meio — “a associação vive muito à base de voluntários”. Em Janeiro último passou a técnica-estagiária, “a tempo inteiro”. E é no ponto em que está.

Na sala de atendimento das vítimas — onde há alguns livros e brinquedos e uma mesa, com uma caixa de lenços de papel ao meio —, ela e os seus colegas psicólogos recebem homens e mulheres (sobretudo mulheres), adultos e crianças (que, na sua maioria, estão ali porque as mães-vítimas pedem esse apoio, numa fase em que os divórcios já estão a correr). Em geral, os encontros acontecem uma vez por semana.

“‘Eu sei que estou aqui porque o meu pai fez isto ou a minha mãe fez aquilo’, dizem algumas das crianças, mal chegam”, conta.. “Mas há outras que dizem: ‘Venho porque tenho dificuldades na escola...’ E é importante dizer-lhes por que é que estão cá, na verdade, e sobre o que vamos falar. ‘O pai e a mãe zangaram-se...’”

Algumas crianças chegam também zangadas. Dizem que não querem mais ver o pai. “Outras desculpam-nos, ‘é a bebida...’”

Há uma regra básica nestes atendimentos. “É dito desde o início à criança (e aos pais): ‘O que vieres aqui dizer, não sai daqui, este espaço é teu, a não ser que nos digas algo que te esteja a pôr em risco.’” O sigilo tem limites quando as vítimas são menores de idade.

O tipo de apoio mais solicitado não é, contudo, o psicológico, mas sim o jurídico. “Somos uma equipa, aqui em Santarém somos 15, incluindo voluntários, juristas, psicólogos, uma médica, uma assistente social, fazemos as marcações em função dos horários de cada um. E se quem vem precisa de tratar de um divórcio, marcamos com a jurista, que não vai poder representar a pessoa como advogada do divórcio, mas vai dar as informações que a pessoa quiser, vai esclarecer dúvidas legais, vai ajudar a preencher formulários, por exemplo, para pedir um advogado oficioso...” Há ainda o chamado “apoio social” — que é accionado nos casos de maior carência económica e que passa pela articulação com outras entidades.

Nem sempre é fácil perceber se uma vítima é realmente vítima do que diz ser. Recorda um caso. Num dia chegava o homem e contava que a mulher o maltratava, no outro vinha a mulher e dizia o mesmo dele. Maria encolhe os ombros. "Se calhar eram os dois vítimas."

No fim, complicado é separar a vida pessoal das histórias que ouve nesta sala da ex-Escola Prática de Cavalaria — diz que o segredo dela é sair do gabinete e ir para o ginásio, “mas às vezes há coisas que ficam na cabeça e no coração”.

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