Quando o Facebook é uma arma para a violência doméstica

Órgãos de investigação criminal lidam cada vez com mais casos de violência doméstica associada à Internet e às novas tecnologias.

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Isabel viveu dois anos de namoro e nove de casamento Paulo Pimenta
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Um dia disse 'basta" e divorciaram-se Paulo Pimenta
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O ex-marido continuou a persegui-la e chantageava-a publicando fotos íntimas dela nas redes sociais Paulo Pimenta
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O ex-marido partilhou no Facebook uma fotografia de Isabel no banho e numerosos comentários maldosos Paulo Pimenta
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“Não acabei com a minha vida, porque pus o meu filho à frente do meu desespero”, diz Isabel Paulo Pimenta
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O agressor está impedido de a contactar ou aproximar-se de Isabel enquanto aguarda julgamento Paulo Pimenta
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As medidas de coacção foram revistas e reforçadas mas Isabel não anda descansada Paulo Pimenta

Primeiro pensou que era engano. Depois percebeu que não. O ex-marido publicara um anúncio num site pornográfico com o nome e o número dela. O telemóvel a tocar, a tocar. Precipitou-se para a GNR. “Nem conseguia controlar as minhas fezes, nem a minha urina, de tal maneira estava alterada.”

Dir-se-á que é um sinal dos tempos. “Ainda temos uma violência doméstica muito tradicional – um vai rebaixando o outro, muitas vezes, até chegar à violência física –, mas há cada vez mais recurso à Internet e às novas tecnologias”, nota Teresa Morais, que no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto coordena a secção que investiga este tipo de crimes.

Computadores, telemóveis, GPS podem fazer parte do arsenal usado por um agressor de qualquer idade, género ou orientação sexual, observa Vieira Pinto, chefe do Núcleo de Investigação e de Apoio a Vítimas Específicas da GNR no Porto. Para aborrecer, intimidar ou controlar a vítima.

Isabel viveu dois anos de namoro e nove de casamento. “No início, passávamos muito tempo juntos. Ele tinha acabado de fazer uma desintoxicação, precisava de vigilância, não tinha amigos. Os amigos dele eram de outro tempo. Eu deixei de conviver com os meus amigos para estar com ele.”

O mal-estar surgiu com o nascimento do filho. A vida de Isabel deixou de girar em torno do marido. “Eu deixei de ser a mãe dele, passei a ser a mãe do meu filho. Ele começou a andar mais alterado, a implicar com o que eu fazia. Exaltava-se. Dizia: 'És uma merda, não vales nada, não serves para nada!'”

Os ciclos repetiam-se: tensão, ataque, apaziguamento. “Eu nada dizia para o ambiente estar mais estável. Eu não queria que o miúdo assistisse a discussões, a berros.” Encurtava o sossego. Cresciam a desconfiança, a violência. “Começou a controlar o meu telefone e o Facebook.”

Isabel não percebia como ele adivinhava os seus movimentos. Só depois de apresentar queixa, soube que ele lhe montara um GPS no carro – a GNR apreendeu o aparelho e analisou os registos. Ele também monitorizava a actividade dela na Internet. Instalou um programa que lhe permitia aceder às palavras-passe, ler todas as mensagens entradas e saídas da caixa do correio electrónico ou do programa de conversação do Facebook, saber em que sites tinha navegado.

A violência sexual, diz, tornou-se comum. “Eu tinha de cumprir as minhas obrigações quer me apetecesse, quer não me apetecesse. Estando ele bem, não queria saber se eu estava bem ou não. Se eu não cedesse, começava logo: ‘Só pensas em ti. És egoísta. Não vales nada!’ Atacava-a também pela forma física. ‘És uma baleia. Pensas que és boa. Melhores do que tu tenho eu ao pontapé.’”

Um dia, Isabel gritou 'basta'. “Ele pôs o televisor aos berros. Foi para a sala, pôs o televisor da sala aos berros. Eu desliguei o do quarto. Ele começou a ligar-me para o telemóvel. Eu desliguei o telemóvel. Ele começou a ligar para o telefone de casa. Eu pus o telefone fora do descanso. Ele pôs-se a berrar da sala para o quarto. O meu filho acordou. Peguei nele e saí de casa.”

Eram três da manhã. Refugiou-se em casa da mãe. Ele seguiu-a, fincou pé à porta, ordenou-lhe que voltasse a casa, a menos que desejasse o inferno. “Eu disse-lhe que enquanto ele não se tratasse não valia a pena”, conta. Divorciaram-se. Não conseguiram chegar a acordo sobre o apartamento comprado com recurso a empréstimo. Entregaram-no ao banco. Declararam insolvência.

Isabel arrendou um apartamento para morar só com o filho, mas acabou por partilhá-lo com o ex-marido. “Ele disse-me que estava a tratar-se, que não tinha para onde ir, para eu lhe dar uma oportunidade, que queria estar comigo e com o filho. E eu… burra… deixei-o vir.” Sentia pena dele. E desejava que ele tivesse mudado. “Queria acreditar que as coisas podiam ser diferentes.”

Finda a fase de lua-de-mel, recomeçaram as alterações de humor, os insultos, o controlo. De nada serviu Isabel pedir-lhe que se fosse embora. “Ele disse: ‘Enquanto não organizar a minha vida, não saio daqui. E tu tens de continuar a ser minha mulher, tens de cumprir as tuas obrigações!’”

Chantagem no Facebook

Desatou a chantageá-la. “Quase todos os meus amigos eram amigos dele. Ele fazia questão de pedir amizade às pessoas que eram minhas amigas no Facebook. Ele dizia que ia falar de mim, publicar fotos íntimas, deixar a minha imagem na lama. Eu ia ficar na miséria, nem ia ter para dar de comer ao meu filho, porque ele ia dar cabo do meu emprego. Eu ia ter de sair daqui e de ir para longe, porque nem ia conseguir olhar para as pessoas.” E, assim, “sob ameaça”, ela ia tendo relações sexuais com ele.

Certo dia, um primo de outra cidade veio passar um fim-de-semana. “Pensavas que eu já cá não estava e que ias metê-lo na tua cama!”, gritou o ex-marido de Isabel. “Para ele, eu dormia com toda a gente.” Tornou a forçá-la a ter sexo. O primo percebeu. De manhã, levou-a à GNR. Os militares foram lá a casa dizer ao homem para sair. Ele pediu tempo para se organizar e eles deram-lhe dois dias.

Isabel aguardou em casa da mãe. “Ele tirou o que quis. Levou quase tudo. Ainda me exigiu dinheiro pelo que deixou – o frigorífico, a placa, os televisores…” E instalou-se no apartamento ao lado. Isabel manteve-se em casa da mãe. “Ainda cheguei a dormir uma ou duas noites em casa para ver o que acontecia. Ele mandava-me mensagens a dizer: ‘Estou a ouvir-te. Não consegues dormir. Andas a pé.’ Queria que eu me sentisse assombrada, sei lá. Também mandava mensagens a dizer que me deixava em paz se eu fosse para a cama com ele mais uma vez.”

Partilhou no Facebook uma fotografia de Isabel no banho e numerosos comentários maldosos. “Escreveu que me deitava com todos, que gostava de estar com não sei quantos ao mesmo tempo, que pedia dinheiro emprestado ao meu padrão e lhe pagava de joelhos. Chegou a usar o nome do meu falecido pai. ‘Coitado, que deve andar às voltas na cama com vergonha da filha que tem.’”

Isabel afligia-se, sobretudo, pelo filho, então com cinco anos. E se tudo aquilo lhe caísse em cima, um dia qualquer, na escola? “Os pais vêem, comentam em casa, os miúdos apercebem-se. A gente sabe como são os miúdos.” Já bastava ela sentir-se olhada de lado na rua e no trabalho. Teve de falar com o empregador. “Quando ele o começou a meter ao barulho, tive de lhe contar para ele estar preparado.” Medo, ansiedade, vergonha. “Não acabei com a minha vida, porque pus o meu filho à frente do meu desespero”, diz.

Subitamente, ele roubou a identidade dela e publicou um anúncio num site porno. O telefone tocou uma, dez, 20, 30 vezes. Ficou em estado de choque. Conduziu até à GNR. “Naquele dia, se ele se atravessasse à frente do meu carro, eu matava-o. Contactei o site a dizer que o anúncio era falso, para o retirarem imediatamente, que eu já tinha apresentado queixa, e eles retiraram.”

A casuística, no Núcleo de Investigação e de Apoio a Vítimas Específicas da GNR, já mostra agressores capazes de retirar informação dos perfis das vítimas, de assumir a identidade delas e de, assim, publicar anúncios, fazer compras, enviar mensagens. E agressores capazes de enviar, de forma sistemática, mensagens abusivas. Ou de recorrerem a GPS e a câmaras de vídeo para as vigiar.

“Pôr gravadores a gravar o que a pessoa diz ou câmaras escondidas para filmar cada movimento da pessoa é uma forma de manter uma dinâmica de poder, de controlo”, diz a psicóloga forense Catarina Ribeiro, investigadora na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica. Sempre existiram formas de controlo: ler a correspondência, vasculhar as gavetas, revistar a carteira. Com a evolução tecnológica, abrem-se possibilidades mais elaboradas.

Tão intensa e menos aparente

Um centro de estudos britânico já elencou quatro “a” que distinguem a violência relacionada com a tecnologia: anonimato, acessibilidade, acção à distância, automação. Embora possa ser intensa, não só é menos aparente a quem está de fora, como requer menos tempo e esforço para perpetrar.

A GNR encontrara o sistema de GPS que o ex-marido de Isabel usava. Apreendeu os equipamentos com mais de mil fotografias dela, de carácter íntimo ou mesmo sexual. Encheu mais de 400 páginas com mensagens que ele lhe enviou por diferentes meios. “Ele estava com uma pulseira electrónica, impedido de se aproximar de mim, de me contactar. No entanto, morava na casa ao lado, ligava-me centenas de vezes por dia, mandava-me centenas de mensagens.”

A 19 de Março de 2015, dia do pai, ele ia jantar com o filho. Isabel foi a casa buscar roupas. “Bateram à porta. Era o meu filho. Eu abri. Vi que o meu ex-marido também estava lá fora. Segui as indicações da GNR: ‘Se você estiver à porta e ele aparecer, feche-se.’ Como o meu filho estava cá fora, fechei-me cá fora. Ele mandou o miúdo para o carro e agarrou-me nos braços. ‘Eu vou-te matar, vais aparecer numa valeta!’ Tentou dar-me uma cabeçada e eu tive o reflexo de fugir para trás. Consegui soltar-me e empurrá-lo. Desatei a correr para o café que havia ao lado de minha casa. Era onde estaria gente, não é? Ele foi atrás de mim. Eu pus-me atrás do balcão. O dono do café disse-lhe logo: ‘Aqui não!’ Chamei a GNR. Ele foi embora com o miúdo.”

O ex-marido aguarda o julgamento e Isabel pediu revisão das medidas de coacção. A juíza estabeleceu um mês para ele mudar de casa. Disse-lhe que o mandaria para a prisão, se ele continuasse a violar a ordem para não contactar a ex-mulher. “Eu tenho um dispositivo que me avisa da proximidade dele. Não se pode aproximar da minha casa nem do meu trabalho. Está proibido de me contactar até por sinais de fumo.”

Já passou um ano, mas Isabel ainda não anda descansada. As visitas da criança fazem-se com recurso a intermediário. “Tive de lhe pôr um processo por ele nunca ter pago pensão de alimentos. No fim de Fevereiro, descontaram-lhe [o valor] no ordenado. Tive medo, mas ele não fez nada.”

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