"Qual é a ausência na minha vida para eu ter escrito este livro?"

A mochila de uma rapariga aparece nos destroços de um comboio onde ela não era suposto viajar. Não há um corpo. Só um vazio. É nesse território entre imaginação e realidade a que chama literatura que João Ricardo Pedro, vencedor do Leya em 2011, constrói Um Postal de Detroit.

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Miguel Manso

Há um narrador que sentimos inseguro que interpela o leitor após o escritor anunciar um facto na nota introdutória. “A 11 de Setembro de 1985, pelas 18 horas e 37 minutos, no troço de via única que liga a estação de Nelas ao apeadeiro de Alcafache, deu-se a colisão de dois comboios — o Sud Express, que partia da estação de Porto-Campanhã com dezassete minutos de atraso, e o Regional, proveniente da Guarda.” Foi o maior acidente ferroviário em Portugal A partir daqui começam as dúvidas. A primeira, o número de vítimas. É provável que tinham sido 150. João Ricardo Pedro (n.1973), o autor, escreve ainda que conhecia duas pessoas que viajavam no comboio que seguia para Paris. Uma morreu, outra não. Trinta anos depois, o acidente é o ponto de partida para Um Postal de Detroit, o romance que se segue à sua estreia depois de vencer o Prémio Leya em 2011, com O Teu Rosto Será o Último.  

Quando ganhou o prémio, João Ricardo Pedro foi notícia além da literatura. Escrevera o romance enquanto esteve desempregado. O livro foi elogiado, traduzido, e até agora o que mais vendeu entre os sete vencedores do Leya. No seu segundo romance, o escritor constrói uma alucinação, com personagens e uma teia de relações que o leitor conhece na perspectiva de um narrador perturbado. Chama-se João, é irmão de Marta, rapariga que se pensa ter sido vítima do acidente numa viagem que não era suposto fazer. Um Postal de Detroit é a narrativa de uma memória habitada pelo burlesco e pelo obsceno, pelo poético, pelo excesso sem excessiva emoção, e pela falta de um sentido. Estamos dentro de uma cabeça à deriva mas guiados por um escritor com um objectivo bem definido: não dar respostas, incomodar, deixar-se levar pela invenção como a grande possibilidade de escape. Este não é um livro convencional e como o autor refere aqui, pode, no fim, deixar “o leitor perplexo”.  

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Trinta anos depois, a colisão entre o Sud Express, que partia da estação de Porto-Campanhã e o Regional, proveniente da Guarda está na origem de Um Postal de Detroit, o romance que se segue a O Teu Rosto Será o Último Miguel Manso

Na introdução refere um facto trágico e adverte que a partir daí tudo é invenção. Quando é que isto começou?
Quando estava a escrever o primeiro livro, ou seja, quando me comecei a entusiasmar com o trabalho de escrita, pensei que um dia haveria de escrever partindo de Alcafache. Eu tinha 12 anos quando o acidente aconteceu e tenho uma memória forte. A brutalidade, as primeiras imagens na televisão e o facto de não se saber ao certo, mesmo depois de todos os inquéritos, quantas pessoas seguiam nos comboios. Os sistemas de venda de bilhetes eram muito artesanais, não havia identificação, e com o incêndio provocado pelo embate, os jactos de água dos bombeiros acabaram por transformar muitos corpos em cinzas. Lembro-me de ao longo da minha vida pensar neste morrer anónimo, onde não sobra um corpo, apenas indícios, e muitas vezes muito vagos. Havia pessoas que sabiam que tinham um familiar num comboio e ele nunca apareceu. Pensei noutra variável: aparecer um indício de alguém e a família não fazer ideia do que aquela pessoa estaria a fazer naquele comboio. Aí, não há apenas a ausência de um corpo mas a de uma justificação para poder haver ali um corpo. No caso, uma mochila. Foi o momento determinante para começar o livro.

É um livro onde arrisca mais do que no primeiro.
É isso que me agrada na literatura, o sentido do risco. Escrevi com essa sensação de risco e de que tudo parecia tão frágil. Foram publicadas 200 e poucas páginas, mas para chegar a elas escrevi centenas e todas estão na minha cabeça. Para mim é muito fácil confundir o livro que de facto escrevi com o livro que tinha na minha cabeça. Quando penso nele não penso só nas 200 páginas. Todas as personagens, todas aquelas situações existem tão intensamente dentro de mim… Tenho a noção de que pode haver grandes fragilidades, mas só vou saber se existem ou não quando começar a ouvir a reacção das pessoas mais distantes de mim. Só então vou ter uma consciência mais exacta do livro que realmente escrevi.

O livro arranca na primeira pessoa, com um narrador que se depreende doente, numa clínica, com um trauma. “Ainda hoje, trinta anos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, seis internamentos depois, sessões de psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choques eléctricos, dou por mim de olhos pregados no tecto, a pensar nesses dois pobres maquinistas frente a frente…” Estas características são determinantes para a estrutura. Foi claro desde o início que o narrador tinha de ser alguém perturbado?
Não. Eu não sabia como iria narrar. A primeira ideia foi a de um narrador que não estaria presente. Depois achei que precisava que o narrador estivesse metido na acção porque iria criar outra intensidade. Pensei em fazer do pai da Marta o narrador, mas às tantas isso tornou-se insuportável. Eu, escritor, no papel do narrador, de um pai de uma filha que desapareceu… era penoso. Percebi que não seria capaz. Arranjei a solução do irmão. Tem uma proximidade, um laço familiar forte. E precisei que o momento da narração fosse muito posterior aos acontecimentos. É alguém a trinta anos do acidente. Essa distância temporal permitiu-me avançar. Foi quase um expediente técnico. O narrador é alguém que pelos vistos sofre de um problema de ordem mental, com uma relação difícil, de alguma ambiguidade, com a irmã que desapareceu.

Permite-lhe também o tom delirante que domina o livro.
O distúrbio mental e o tempo permitem todos os delírios. Muitas vezes não sabemos muito bem o que é que ele está a escrever. Que personagens são aquelas que ele imagina a partir dos cadernos da irmã? Existiram mesmo? Acompanham-no há trinta anos. Toda aquela gente existe, pelo menos na cabeça dele.

O romance parte de duas grandes ausências: a de Marta na vida de uma família, e a dor do narrador, ainda criança, por se sentir ausente da vida da irmã. Os diários de Marta são feitos de desenhos que detalham um quotidiano, mas ele não se vê neles. “Ao ver-me excluído dos seus cadernos, não era apenas o me sentimento de pertença que saía diminuído, era a minha própria existência que ficava posta em causa.” A ausência é o grande tema. 
É isso mesmo. Quando um escritor questiona o que é a imaginação, de onde vêm as coisas que eu imagino e depois escrevo... Acho que vem sempre tudo de uma ausência qualquer, da necessidade de preencher esse espaço vazio. O narrador preenche a ausência da irmã com aqueles delírios. E eu, escritor, qual é a ausência na minha vida para eu ter escrito este livro? Não tenho resposta. A experiência da literatura — seja no escritor, seja no leito — é uma tentativa de preenchimento. A necessidade de ler e a felicidade que muitas vezes dá a experiência da leitura tem a ver com um qualquer sentimento de ausência a que a leitura traz algum consolo. Aqui não sei se há muito consolo [risos] No final do livro talvez haja alguma perplexidade no leitor.

Mas causar perplexidade não foi uma intenção? 
Sim, a perplexidade foi propositada. Tento que aconteça. Quando ouço perguntar qual o tema de um livro… acho que todos os livros são sobre literatura. Uma coisa que dá origem a outra. Quando no fim o narrador olha um postal de Detroit e começa a descrevê-lo antevê-se já outra história. Um fim é um começo... É uma espécie de homenagem à literatura. Voltamos à ideia da ausência, à forma como preenchemos ou tentamos viver com uma ausência profunda e aguda.   

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Nuno Ferreira Santos

No início do romance, é proposto a Marta, estudante de pintura, que desenhe o rosto do capitão Ahab, protagonista de Moby Dick, de Melville, a partir do que a literatura lhe sugere.
Sou outra vez eu a pensar sobre literatura. Interessa-me a história que pode nascer a partir de um desenho ou quadro. Muitas vezes penso que tudo seria tão mais fácil se eu soubesse desenhar.

É por isso que fala, no livro, da concisão do desenho…
Exactamente. Com o desenho ponho uma personagem no papel em poucos minutos. Com as palavras é tudo mais difícil, tão mais vago, nunca vou chegar a uma figura totalmente inequívoca; e quando estou a ler, o meu capitão Ahab é diferente do dos outros leitores. Se houvesse um capitão Ahab pintado, desenhado por Melville ou encomendado por ele, aquele passaria o capitão Ahab de todos. O extraordinário da literatura, e que me obriga enquanto escritor a um grande trabalho, é que as personagens têm de passar a existir mas com um grande grau de liberdade para a imaginação do leitor entrar. O grande poder da literatura é esse. Por isso se diz que o livro só está acabado depois de ter sido lido. Aí é que ele existe como livro e tudo faz sentido. 

Em 2011, procuraram-se referências para o caracterizar, apontaram um contágio com Jorge Luis Borges. Aqui nota-se a presença de autores americanos…
Sim. Enquanto fui escrevendo este livro — e antes — li intensamente alguns autores, e todos americanos. Talvez por isso o título. As referências a Melville, a Emily Dickinson, aos contos de Raymond Carver, também o Hemingway estão lá porque me acompanharam ao longo da escrita. Para mim é difícil perceber se isso me vai contaminar. Eu parava de escrever e para descansar abria os livros deles. Isso até a um determinado momento. Nos últimos três meses não consego ler nada. Preciso de me fechar completamente. E fecho-me não só em relação à literatura dos outros como a tudo o resto. Saio o mínimo possível de casa, falo o mínimo com outras pessoas, num trabalho muito intenso e solitário. Mas fora isso preciso muito de continuar a ler, a ser contagiado, a ir à procura de coisas. Preciso disso para continuar a escrever e essas coisas acabam por ficar no livro. Não tenho qualquer pudor em relação a isso.

É o segundo livro de um vencedor do prémio Leya muito mediatizado. A expectativa pesou?
Demorei a começar. Tinha de esquecer que tinha vencido um prémio, que tinha tido um primeiro livro com muito sucesso, muitas traduções. Este é um livro com uma narrativa estranha, acho que muitos leitores vão acabar sem perceber bem o que lhes aconteceu na experiência de leitura. Eu não quis fazer concessões. Quis escrever o livro que me interessava, o melhor que conseguisse. Tentar afastar-me o mais possível das expectativas foi um batalha comigo e com a minha capacidade de fazer um trabalho literário. Acho que consegui. Agora volto a pensar em como o livro irá ser recebido, mas já posso. Neste momento acho que este livro é bem melhor do que o primeiro, mas não sei o que vou achar daqui a um ano ou dois. 

Tem-se questionado a qualidade das obras vencedoras do Prémio Leya…
O problema do Prémio Leya — que não é problema para quem ganha — é ser obscenamente alto para os padrões nacionais. Se houvesse por cá três ou quatro prémios de cem mil euros imagino que não se falasse muito disso. Se fossem cinco mil euros ninguém ligava. Existe alguma desconfiança e também já ouvi teorias da conspiração. Sobre mim já ouvi dizer que só me tinham dado o prémio depois de saberem que eu estava desempregado porque era uma história fantástica. Os prémios dependem dos critérios de um júri e os critérios estéticos são discutíveis e acho bem que sejam discutíveis e discutidos. Isso não acontece porque não há suficientes críticos e meios a apostar na literatura para que nasça uma discussão realmente fértil e rica para alimentar público e opinião. Seria muito positivo, obrigaria a uma reflexão sobre as escolhas.  

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