Livre e unida

Não há tempos tão sombrios em que as ideias generosas não possam ser pensadas e não devam ser defendidas.

Nestes dias em que um novo ataque terrorista, desta vez na capital da União Europeia, levará como sempre ao questionamento da liberdade de circulação e do próprio projeto europeu, talvez valha a pena lembrar como esse projeto nasceu. Não foi num tempo de concórdia, numa terra de paz ou num momento em que as melhores condições estivessem reunidas. O projeto europeu nasceu entre gente assustada e perseguida, traumatizada pela guerra e saturada pelas inimizades, sem recursos, nem forças e às vezes nem razões para ter esperança.

Quando me convidam para falar em escolas sobre o projeto europeu, começo muitas vezes pelo exemplo dos três jovens italianos — Ernesto Rossi, Eugeni Colorni e Altiero Spinelli — e que escreveram o Manifesto por uma Europa Livre e Unida, um primeiro e visionário esboço de uma democracia europeia. Presos na pequeníssima ilha de Ventotene por crime de anti-fascismo, foi a mulher de um deles, Ursula Hirschman, refugiada e judia, que trouxe o manifesto para o continente. Eis o exemplo quase extremo de uma situação de impotência: isolados, silenciados, sem recursos, sem influência e correndo risco de vida, estes quatro jovens não se impediram de imaginar um futuro fraterno.

No centro desse projeto está a ideia de que se pode ter mais do que uma identidade: pode ser-se mulher judia e alemã, e ainda assim lutar com italianos por uma democracia europeia, e ainda assim ser uma cidadã do mundo defendendo direitos humanos universais e indivisíveis. Cada identidade dá sentido, peso e consequência às outras.

Esse projeto pode parecer ingénuo. Mas não é inócuo. Ele ameaça diretamente um outro projeto: o do autoritário e do demagogo que proclama aos seus seguidores que uma identidade só pode sobreviver se excluir todas as outras. Se fores judeu, dizia-se, não podes ser alemão. Se fores muçulmano, diz-se, não podes ser europeu.

Se o projeto das identidades partilhadas vencer, o da identidade exclusiva (e excludente) perde, e com ele perdem poder os autoritários e demagogos.

Ora, tal como nem todos os defensores das identidades partilhadas são iguais — e conhecem e acolhem as suas diferença — também os autoritários e demagogos defendem às vezes coisas que parecem opostas. Só que, no caso deles, escondem e mascaram as semelhanças que têm entre si. Todos os autoritários e demagogos dependem do medo e usam como método a lavagem cerebral. No caso dos fanáticos islamistas, para impedir que os jovens muçulmanos se possam identificar como mais do que só muçulmanos: homens e mulheres, europeus, ocidentais ou cosmopolitas. No caso dos fanáticos islamofóbicos, para impedir que a Europa possa acolher refugiados ou para usar os atentados como forma de acabar com a liberdade de circulação que é ainda hoje uma das características mais sedutoras de um projeto europeu que detestam.

Por muito ódio que uns e outros tenham, não são mais assustadores do que os seus antepassados fascistas. E, tal como no passado, não impedirão as ideias generosas de uma Europa unida e livre acompanhando a primazia dos direitos humanos universais e indivisíveis, de serem pensadas, defendidas — e vitoriosas.

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