A Bélgica é um país dividido que não sabe combater o terror no seu interior

“Nos EUA, a segunda geração de imigração pode ser Presidente, aqui a quarta geração é do Estado Islâmico”, reconheceu o ministro do Interior belga. Falta vontade de mudar a situação.

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Memorial na Praça da Bolsa, em Bruxelas Aurore Belot/AFP

Fez-se luz sobre o viveiro de jihadistas que durante anos foi crescendo na cidade que acolhe a sede da União Europeia quando se percebeu que os atentados de Novembro em Paris tinham sido organizados a partir de Bruxelas. Agora que a ameaça terrorista se concretizou em Bruxelas, os analistas falam no falhanço da própria Bélgica como Estado.

Ainda não se conhecem pormenores sobre os terroristas que levaram a cabo os ataques desta terça-feira, mas é provável que os terroristas que os puseram em prática tenham ligações a Molenbeek, uma das 19 comunas de Bruxelas, que se estende para Oeste do centro da cidade. Ali, pelo menos 40% - há quem diga 80% - da população é de origem magrebina, e a maioria dos terroristas envolvidos nos ataques de Paris e noutros cometidos em França e Bélgica – como ao Museu Judaico de Bruxelas, ou ao TGV que seguia de Amsterdão para Paris, travado por soldados americanos de licença – viveram ali, ou passaram por ali.

Mas eram também dali os assassinos de Ahmad Shah Massoud, o líder da Aliança do Norte, que combatia os taliban no Afeganistão, e cujo homicídio em 2001 foi como que um prelúdio para os atentados em Nova Iorque e Washington a 11 de Setembro, recorda a revista The Economist.

Salah Abdeslam, o terrorista suicida detido na sexta-feira, e que não se fez explodir junto ao estádio de França em Paris, em Novembro, viveu sempre em Molenbeek, embora tenha nacionalidade francesa – um acaso de que beneficiou o seu pai, e que se estendeu a toda a família. O cabecilha desses ataques, Abdelhamid Abaaoud, também tinha crescido naquele bairro. Molenbeek funciona ao contrário do padrão europeu de subúrbios onde se acumulam populações pobres e desajustadas: adequa-se mais ao conceito das inner cities americanas, os centros urbanos degradados dos EUA, escreve o jornalista Tim King no site Politico.

Na verdade, a Bélgica é o país europeu que mais combatentes deixou ir para a Síria, em termos proporcionais à sua população. Dos cerca de 640 mil muçulmanos belgas, pelo menos 500 homens e mulheres partiram para a jihad desde 2012, dizem os peritos – e cerca de uma centena terão regressado. Para as autoridades, serão um potencial perigo – ou uma oportunidade para tentar a desradicalização.

A questão está em como o Estado belga consegue lidar com estes cidadãos.

Em Molenbeek existem os habituais factores de falta de integração dos imigrantes, mesmo que sejam segunda ou terceira geração – desemprego, discriminação social ou racial, problemas de identidade, falta de acesso à educação, como se pode verificar na vizinha França. Mas a Bélgica tem um problema adicional, que é o de ser um país com uma identidade estilhaçada entre as duas principais comunidades linguísticas, francófona e flamenga.

Valão ou flamengo?

“A maior parte dos jovens muçulmanos no Reino Unido ou em França consideram-se britânicos ou franceses. O que é um jovem de origem marroquina nascido em Bruxelas deve sentir? Flamengo ou valão [francófono]? Ou bruxellois [designação do dialecto de Bruxelas e dos seus habitantes]?”, interroga-se John Lichfield, correspondente do jornal “The Independent” em Paris há duas décadas.

Este estilhaçamento identitário levou ao estabelecimento de estruturas de poder paralelas, sem que exista um Estado central ou federal forte. A falta dessa superestrutura produz uma disfuncionalidade de sectores chave, como a segurança ou a justiça. Até há pouco tempo, cada uma das comunas de Bruxelas tinha a sua própria polícia – o número foi diminuído recentemente, diz o site Politico. Até 1998, não existia um organismo central para emitir passaportes: cada uma das 520 comunas belgas podia fazê-lo. Se alguém quisesse forjar passaportes, bastava assaltar os Paços do Concelho, sublinha Tim King.

O sectarismo é outro efeito, que nunca foi tão claro como quando a Bélgica passou 541 dias sem governo, em 2010 e 2011. O ministro do Interior, Jan Jambon, é adepto de uma linha dura: após os atentados de Paris, prometeu “limpar Molenbeek”, investindo contra o tráfico de droga e armas, e os furtos, que são também associados com esta comuna.

“Estamos a falar de terceira e quarta geração de imigração: são jovens nascidos na Bélgica, até os seus pais e mães nasceram na Bélgica, e ainda assim estão abertos a mensagens [de radicalização]”, disse Jambon à CNN. “Isto não é normal – nos EUA, a segunda geração é o Presidente; aqui a quarta geração é um combatente do Estado Islâmico. Isto é algo em que temos de trabalhar”, afirmou o ministro, que é do partido nacionalista Nova Aliança Flamenga.

O uso da força, no entanto, não é a melhor forma de integrar os belgas que não conseguem sentir-se integrados devido à sua religião. “Foi como um assalto, uma coisa que se vê nos filmes. Eram dez, talvez mais, a apontar-nos armas… Porquê tanta violência”, contou à CNN Ali (um pseudónimo), cujos dois irmãos se juntaram ao grupo radical Sharia4Belgium e partiram para a Síria, para combater. Sabe que um deles morreu.

O excesso de violência das forças de segurança não tem ajudado nada, pois fez com que a sua família e os seus amigos se revoltassem contra as autoridades. “Isto encheu-nos de ódio. Não encontraram nada, nem armas, nem explosivos, nada. Mas entraram na nossa casa como se estivéssemos armados até aos dentes.”

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