Já não é possível salvar o ícone?

Desta vez, Lula não foi poupado. O seu regresso ao Governo para evitar a justiça foi um triste acto de desespero.

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1. Faltava menos de uma semana para as eleições americanas de 4 de Novembro de 2008. É fácil de imaginar qual era o tópico de todas as conversas entre os participantes de uma conferência internacional organizada pelo Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, em Paris, sobre as grandes tendências que estavam a moldar o mundo. Barack Obama venceria mesmo as eleições presidenciais? Ainda era difícil de acreditar, embora a maioria não pretendesse outra coisa. É fácil de imaginar também o assombro com que os conferencistas ouviram as palavras de um jovem diplomata brasileiro, que Marco Aurélio Garcia, o poderoso assessor de Lula para a política externa, enviara em seu lugar. Para o Brasil, disse ele, é absolutamente indiferente que ganhe John McCain ou Barack Obama, a América não é importante para nós. O quê? Lula não liderava um governo de esquerda? Não era, ele próprio, um operário que chegou à presidência? Igualmente carismático, igualmente portador de uma mensagem de esperança? Pensando melhor, a mensagem brasileira era já o sintoma de uma certa arrogância que o Brasil de Lula exibia contra a hegemonia do Norte, acreditando no seu declínio inevitável, sobretudo a partir da crise financeira. Nessa altura ainda tudo parecia correr bem ao Brasil e ao seu Presidente. Lula tinha o mundo a seus pés, pela sua história, pelo seu carisma, pela sua moderação na gestão da economia depois de receber de Fernando Henrique Cardoso (FHC) a faixa presidencial, mas também porque retirara milhões da miséria extrema. Obama chamara-lhe “o cara”, numa reunião do G-20 em Londres. Iria sair do Planalto com mais de 80 por cento dos brasileiros a seu favor. Muita gente, fora do Brasil, ainda estava disposta a acreditar que Deus era realmente brasileiro. A sucessão de dois Presidentes do calibre de FHC e de Lula da Silva punha fim a qualquer dúvida. Primeiro, um dos maiores intelectuais do seculo XX, autor do Plano Real que matara a hiperinflação que, por sua vez, “matava” os pobres, e que vencera a tremenda crise de endividamento do Brasil. Depois, o operário sindicalista, nascido na miséria do Nordeste, chegava ao Planalto, fazendo do combate à pobreza o seu programa. “Toda a gente tem de ter direito a três refeições por dia”, dissera na tomada de posse. Em boa medida cumpriu a promessa.

2. Lula chegava ao fim do seu segundo mandato com a economia a crescer, com 40 milhões de brasileiros a alcançar pela primeira vez o acesso aos bens de consumo próprios da classe média e mantendo em boa medida o seu prestígio internacional. Dissera aos brasileiros que “o século XXI será o século do Brasil” e que depressa alcançaria os países do “primeiro mundo”. FHC privilegiara as relações com os EUA e a Europa para fortalecer a economia brasileira. Lula acentuou a tradicional “autonomia” do Itamaraty, preferindo as relações Sul-Sul para dar corpo a uma diplomacia mais “reivindicativa”, que reflectisse os novos equilíbrios de poder mundiais nas instituições internacionais. Mas fizera o milagre de estar ao mesmo tempo e com o mesmo à-vontade no Fórum social de Porto Alegre ou no Fórum económico de Davos. O mundo continuava rendido, oferecendo-lhe o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos. FHC chamava a atenção para que Lula não era um exemplo típico da esquerda populista sul-americana. Não era nem antiamericano nem antiglobalização. Em 2010, já quase no fim do seu segundo mandato, Lula deu um passo que se veio a verificar muito maior do que a perna, ao participar numa iniciativa diplomática do então primeiro-ministro turco Recep Erdogan para resolver o problema do nuclear iraniano. Vê-lo ao lado de Ahmadinejad em Teerão não foi a melhor das referências. O acordo irritou os Estados Unidos e revelou-se um profundo fracasso. Fez certamente adiar qualquer intenção americana de reformar o Conselho de Segurança.

3. Lula foi salvo do escândalo do “mensalão” em 2005, que envolveu ministros que lhe eram muito próximos, a começar por José Dirceu que, de algum modo, moldou a sua carreira política. A sua reeleição em 2006 já não foi a mesma coisa. Em 2010, escolheu para lhe suceder no Planalto alguém com um perfil sóbrio, sem pingo de carisma, que fora durante alguns anos a chefe da sua Casa Civil. Dilma não lhe faria sombra, permitindo o seu eventual regresso ao poder. Ao contrário de Lula, um pragmático na condução da economia, Dilma tinha uma visão muito mais ideológica, defendendo um maior intervencionismo do Estado. Entretanto, os benefícios do poder foram-se transformando em propriedade do poder, o que é quase inevitável quando o mesmo partido permanece demasiado tempo no governo, ao ponto de já não o querer abandonar. A segunda vitória de Dilma, em Outubro de 2014, já foi por uma unha negra, dividindo o país ao meio, entre o Norte e Nordeste mais pobre e naturalmente grato a quem o tirara da miséria, e o Sul e Sudeste mais desenvolvido. A desaceleração chinesa e as perspectivas pouco optimistas para o crescimento global travaram a galinha dos ovos de ouro das commodities. A inflação já toca nos dois dígitos. O crescimento é negativo. O capital que voou para as economias emergentes quando a crise financeira rebentou nos EUA já começou a regressar à base, sem que a indústria, habituada a produzir para um mercado interno altamente proteccionista, se tivesse transformado o suficiente para competir nos mercados internacionais. Em 2013, a nova classe média baixa de Lula veio para as ruas protestar contra a má qualidade dos serviços públicos, da saúde ao ensino, passando pelos transportes. Levou a peito as palavras do ex-Presidente sobre o que é um país do “primeiro mundo”. O escândalo impensável do Lava-Jato pôs fim à alegada superioridade moral da esquerda, deixando a corrupção e o nepotismo a céu aberto. A corrupção é endémica na classe política, não só no PT. Mas o PT, que anunciou um combate mortal à corrupção quando chegou ao poder, não ficou infelizmente atrás de ninguém. Desta vez, Lula não foi poupado. O seu regresso ao Governo para evitar a justiça foi um triste acto de desespero para alguém da sua estatura humana e política. O poder transformou-se numa droga à qual não parece querer resistir. A questão é saber se a democracia brasileira consegue resistir sem incidentes graves.

4. Mas há outros factores que devem ser considerados. A “república dos juízes” é sempre um sinal de perversão da democracia. “Anjos vingadores” como o Juiz Baltasar Gárzon, em Espanha, ou o Procurador Antonio Di Pietro, em Itália, nunca são recomendáveis. E depois, há uma classe média alta no Brasil que se habituou a todas as mordomias e que pensa que já nasceu com esse direito, alimentando um perigoso revanchismo. No ano passado, resolveu vir também para a rua reivindicar a destituição de Dilma. É preciso estar no Brasil algum tempo para sentir esta desigualdade profunda, quase “natural”, que qualquer democracia europeia não suportaria. Ainda não sabemos como acabará esta tremenda crise política que matou o sonho brasileiro. Talvez já seja tarde demais para salvar o ícone, a bem da conciliação de um país que tem tudo para “dar certo”. Regressado do Brasil, onde esteve um ano na Universidade de São Paulo, Álvaro de Vasconcelos (o anterior director do IESUE) alertou no PÚBLICO para “uma polarização maligna que a campanha eleitoral iria agravar". “A verdadeira crise brasileira é política”.

 

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