Punk is not dead

Michael Clark revolucionou a dança britânica da cabeça aos pés, cruzando o ballet clássico com o rock, o pós-punk, a moda e as artes visuais. Sábado e domingo, em Serralves, vamos ver o que lhe andou a passar pela cabeça nestas últimas semanas – em versão minimalista.

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No início da década de 80, de crista punk, pulseira de picos, beleza apolínea e uns tenros 20 anos, começou a revolucionar a dança britânica da cabeça aos pés. Hoje tem 53 anos, a postura punk continua lá Jake Walters

20 de Setembro de 1988, Londres. Está a acontecer algo no palco do Sadler's Wells que nunca tinha acontecido antes

The Fall a tocar ao vivo num espectáculo de dança, com a guitarrista Brix Smith em cima de um hambúrguer gigante; Leigh Bowery, figura vulcânica, excessiva e irrepetível da moda e da performance britânicas, a escudar-se por trás de uma lata de Heinz Baked Beans; um smiley virado do avesso, subvertendo o símbolo do acid house e das raves, como parte da cenografia; bailarinos vestidos de jogadores de futebol, entre várias mudanças de figurinos. E, sobretudo, uma linguagem coreográfica singular que, sem sabotar a formalidade e as geometrias do ballet clássico, dinamitava com os seus limites, transportando-o para o circuito underground da música, da moda e dos clubes londrinos.

O que se estava a passar no respeitadíssimo teatro de Londres era I am Curious, Orange, peça icónica de Michael Clark, coreógrafo e bailarino escocês – que se encontra, aqui e agora, numa residência em Serralves com a sua companhia. No início da década de 80, de crista punk, pulseira de picos, beleza apolínea e uns tenros 20 anos, começou a revolucionar a dança britânica da cabeça aos pés. O espectáculo, para o qual The Fall criaram o álbum I Am Kurious Oranj, assinalava o tricentenário da subida ao trono inglês do protestante William of Orange, o que se tornou numa desculpa para coreografar um jogo de futebol em palco entre os Rangers e o Celtic e, assim, abordar o sectarismo político e religioso na Escócia.

Fazer citações históricas e estéticas de forma atrevida e astuta, jogar com as regras do espectáculo com ironia, desfaçatez e liberdade, trabalhar com uma rede de colaboradores da música, moda e artes visuais, cruzar a pop e a alta cultura – não para as usar como muletas estilísticas mas para edificar um discurso e uma identidade próprios –, são características transversais à obra de Clark, o grande iconoclasta da dança britânica. E que na antecâmara de I am Curious, Orange já tinha feito acontecer uma série de coisas que nunca tinham acontecido antes.

Entre elas: foi considerado um dos maiores prodígios da Royal Ballet School, qual Nijinsky do punk, mas recusou um lugar na companhia como bailarino principal, aos 17 anos. Fundou a sua própria companhia aos 22, em 1984, já com um currículo de 16 criações originais. Apresentou as suas peças em clubes gay e discotecas, como a mítica Haçienda, em Manchester, sem nunca ficar de fora das programações de teatros, óperas e outros espaços institucionais (a porosidade entre a cultura de elite e as manifestações artísticas mais subterrâneas eram a sua maneira de empregar a ideia de democratização do movimento da Judson Dance Theater). Dançou no videoclip de Wood Beez, dos Scritti Politti. Injectou na dança o rock, o punk e, sobretudo, o pós-punk, órgãos executivos das suas coreografias, que muitas vezes surgiam conjugados com música erudita.

Nas suas peças ouviam-se os Public Image Ltd e os T-Rex, The Wire e The Fall, estes últimos os seus colaboradores mais próximos durante os 80s, a par do cineasta Charles Atlas (com quem continua a trabalhar) e de Leigh Bowery e Trojan, duas aves raras da moda britânica que Clark conheceu (e depois perdeu, o primeiro por causa da sida, o segundo por causa de uma overdose) nos clubes de Londres, que tanto serviam de laboratórios de experimentação artística como de passerelles, com sexo e drogas à descrição.

Uma contracultura narrada em directo nas páginas da The Face, onde Michael Clark apareceu uma série de vezes, com dildos, plataformas prateadas nos pés e lábios azuis. Não era deboche instantâneo nem gongorismo. Clark criou um continuum entre a sua vida e o palco, entre o individual e o colectivo. E inscreveu nas suas coreografias, permeáveis à energia do seu tempo, momentos transformativos da sociedade e da arte britânicas e da cultura pop.

Presente vs. anos 80
Março de 2016, Porto. Michael Clark, 53 anos, hoje mais coreógrafo do que bailarino, figura esfíngica com alfinete na orelha, há muito que não é o rapaz de tutu branco, crista, pulseira de picos e T-shirt de Vivienne Westwood. Mas a postura punk continua lá. É jocoso, espontâneo e corrosivo. Não gosta que lhe controlem os horários. Desvia-nos várias vezes do guião da entrevista, e a certa altura já se fala sobre feminismo, a falta de representação das mulheres nas artes performativas e visuais (“pensava que o mundo das artes estava mais evoluído”, atira) e as eleições americanas. Pede sugestões de bandas recentes. “Tenho uma aversão a quase tudo o que ouço agora, tudo parece ter um som genérico e produzido.”

Michael Clark está em Serralves numa residência artística com o actual núcleo duro de bailarinos da sua companhia, que ficaram também responsáveis por orientar um programa de masterclasses com alunos do Balleteatro e do Ginasiano. Arrancou a 29 de Fevereiro e culmina nas apresentações públicas que vão decorrer ao longo deste sábado e domingo na Casa de Serralves.

“O que estou a planear apresentar são duas coisas: os primeiros passos de uma nova peça que irá estrear em Outubro no Barbican [a sede da Michael Clark Company desde 2005] e algo ligado à música de [Erik] Satie, que tem a ver com trabalhos anteriores e que combina muito bem com a arquitectura da Casa”, adianta. “Uma situação destas, em que posso responder genuinamente ao espaço, é muito rara.”

E é também raro ter um convidado assim. Afinal, Clark operou uma mudança paradigmática e libertária na dança contemporânea. No entanto, a sua ausência dos palcos durante parte de década de 90, para resolver o vício em heroína e metadona (por causa da primeira chegou a adormecer em palco, confessa), contribuiu para o afastar da histórica mais canónica da dança e “fez com que o seu impacto saltasse uma geração, começando a sentir-se mais recentemente na dança e nas artes visuais”, explica Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves e autora da monografia Michael Clark (2011, Violette Editions), o único livro sobre o escocês.

O convidado é especial, mas para não defraudar expectativas convém reforçar que estas (curtas) performances vão funcionar como um momento de laboratório aberto ao público, e não como um espectáculo normal (no caso de Clark, isso implicaria uma grande produção). Uma forma engenhosa de lidar com as restrições orçamentais e o posicionamento que um museu de arte contemporânea deve ter perante as artes performativas e a sua história, abrindo espaços de descoberta, reflexão e (re)interpretação, em sintonia com a dinâmica programática envolvente.

Num momento em que a programação cultural da Câmara Municipal e respectivos equipamentos monopolizam atenções, é bom lembrar que o programa de dança e performance de Serralves tem sido particularmente pertinente e coerente nesse sentido. E é de facto possível estabelecer ligações entre Michael Clark, as exposições correntes do Museu – a de Wolfgang Tillmans e a colecção Sonnabend – e o próximo performer a apresentar-se em Serralves, Adam Linder, que foi bailarino de Clark.

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Clark vai trabalhar em breve com Kim Deal (Pixies e The Breeders) Jake Walters

“Se tivéssemos dinheiro para programar o reportório do Michael, programávamos. Mas o nosso trabalho também é perceber de que maneira podemos contribuir com algo diferente para o circuito de artes performativas da cidade e do país”, justifica Suzanne Cotter. “Este museu é um lugar de experiência, de procura, de investigação. Não temos só de produzir e apresentar”, reforça Cristina Grande, programadora de artes performativas da instituição.

Uma outra lógica de produção e consumo que desafia a forma mercantilizada e acelerada de lidar com a arte e com o processo de criação. E que está alinhada com o modus operandi de Clark. “Ele quer continuar a trabalhar como trabalhava, sem se comprometer e a fazer as coisas à sua maneira, ao seu ritmo. Não é uma incapacidade em se comprometer, é uma recusa”, aponta Cotter.

Há uma questão que se levanta na actual conjuntura, em que as políticas culturais e as programações são fortemente controladas e regulamentadas: seria possível Clark e os seus amigos e colaboradores fazerem hoje tudo o que fizeram nos anos 80? “Nessa altura havia um desinteresse generalizado e não se questionava tanto a programação como hoje, por isso havia algo tão livre como o Riverside Studios” [onde Clark teve a sua primeira residência como coreógrafo, em 82], considera Suzanne Cotter. “Mas acho que a questão principal é que ninguém prestava atenção e por isso eles podiam fazer o que quisessem. Tal como os YBAs [o grupo Young British Artists, de Damien Hirst, Sarah Lucas e companhia].”

Mesmo as bandas mais radicais do pós-punk, como os Public Image Ltd e The Fall, passavam nas rádios inglesas e apareciam no programa de televisão Top of The Pops – coisa que não acontecia nos EUA, nota Simon Reynolds na sua bíblia do pós-punk Rip It Up and Start Again. De certa forma, Michael Clark, Leigh Bowery e Mark E. Smith, entre outros, testemunharam o fim de uma era.

Clark, contudo, nunca quis ligar o seu trabalho a um determinado período histórico. “Isso parecia-me muito limitado e eu não queria limites”, afirma. “Havia artistas a fazer coisas contra a Thatcher mas eu não precisei de uma desculpa para fazer o que fazia.” Diz que continua a “fazer o que quer”, mas concorda que o circuito artístico está mais regulamentado do que antes – e que é um “desafio constante” arranjar dinheiro para fazer espectáculos. “Se calhar faz parte de crescer… Há um sentimento de regulamentação ligado a isso, o que não é propriamente agradável.”

Música, sempre
O trabalho de Michael Clark foi alvo de várias interpretações redutoras e superficiais, focadas na exuberância dos figurinos, nos dildos, nos fatos com os rabos à mostra e nos detalhes sumarentos da sua vida pouco beata. O que muitos viam como provocador e carnavalesco era, na verdade, uma reacção inteligente a um ethos da dança (e a uma ideia de minimalismo e despojamento muito pós-modernista) que rejeitava o espectáculo, o humor, o sexo, o virtuosismo e a narrativa visual. Clark quis dizer que sim a tudo isto, e continua a fazê-lo. Hoje está menos disruptivo, mais discreto, mas longe de estar domesticado.

Nas suas coreografias, a estrutura e a elegância do ballet clássico são – sempre foram – conjugadas com uma vitalidade, espontaneidade e jovialidade punk, criando-se uma espécie de dissonância cognitiva que faz nascer novas formas (sim, é possível dançar a distorção de uma guitarra). A pulsão sexual, a abordagem não-binária ao género através dos figurinos e as referências sem pudor à homossexualidade (como pôr um bailarino pelvicamente sinuoso a dançar “Boys, boys, it’s a sweet thing”, de David Bowie) são outros dos elementos que sobrevivem na sua obra.

Para Clark, a dança contemporânea “continua a ser conservadora”, diz, depois de perguntarmos se não acha estranho que o rock seja tão pouco usado em coregrafias. “A dança contemporânea não vale nada (risos). Há excepções, mas no geral é tão divorciada da realidade… É meio embaraçoso estar envolvido nela. As pessoas estabeleceram uma ideia estranha do que deve ser a dança contemporânea, inclusive musicalmente. Acho que também tem muito a ver com o facto de se treinar os bailarinos dentro de uma lógica muito limitadora.”

Conciliar a dança com a música das bandas que ia ver depois das aulas na Royal Ballet School (onde os professores já escreviam nos relatórios que tinha uma musicalidade nos movimentos fora de série) foi, desde a adolescência, o seu objectivo maior. “Na altura não conseguia arranjar uma maneira de fazer coexistir as duas coisas, foi um processo um pouco moroso”, revela. Teve aulas com Merce Cunningham e com John Cage, mas foi com a coreógrafa americana Karole Armitage, a “bailarina punk”, que Clark conseguiu o que queria.

Foi através desta abertura referencial, matéria vital da própria identidade do pós-punk (os The Fall acarinhavam os seus cartões da biblioteca tanto quanto o LSD e a música) que Michael Clark conseguiu introduzir à dança um novo público, mais plural e democrático. “Sobretudo durante os anos do Riverside Studios, havia todo o tipo de gente a ver as suas peças: punks, cabeleireiras, designers de moda, pessoas que trabalhavam em discotecas. Através do seu trabalho, ele tocou em imensas e diferentes pessoas. É completamente fascinante”, diz Suzanne Cotter. Nos últimos anos, continuou a privilegiar as colaborações com artistas de outras áreas, de Alexander McQueen a Jarvis Cocker, dos Pulp. Na música, vai trabalhar em breve com Kim Deal (Pixies e The Breeders).

Michael Clark diz que não se arrepende de nada do que fez no passado. E isso é notório nas suas últimas criações, onde se auto-referencia. Em come, been and gone (2009) reavivou Heterospective (1989) no corpo da bailarina Kate Coyne, solo em que dançou Heroin dos Velvet Underground numa galeria de arte, com um fato adornado de seringas. “Quero continuar a tentar viver a minha fantasia de que tudo é livre. Fazer o que quero. Tem a ver com a forma como cresci”, diz no final da conversa. “Live till your rebirth and do what you will, Oh by jingo”, dançou ele em come, been and gone, ao som de After All de David Bowie. E parece que esta canção nunca fez tanto sentido.

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