Por amor ao barulho

Após seis anos os Black Mountain regressam aos discos e estreiam-se em palcos portugueses. Depois da passagem pelo festival Tremor, concertos no Hard Club, no Porto, dia 27, e no Musicbox, em Lisboa, dia 28. Preparem-se para uma descarga de riffs.

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Convém explicar a quem por alguma razão tenha passado ao lado da música dos Black Mountain que este ruído é controlado

Os físicos dizem que é uma emissão de radiação electromagnética particularmente intensa, que resulta de uma descarga electrostática. Muito bonito, muito científico. Mas para nós cá em baixo tanto faz – o que nos interessa é que aqueles raios azulados que descem à Terra com tremenda brusquidão e violência conseguem ser tão aterradores quanto belos. Aquilo que em linguagem convencional chamamos relâmpago comporta esse paradoxo que muito revela sobre o ser humano – ficamos fascinados com o que nos assusta, encontramos o belo por entre os fenómenos que nos podem exterminar.

Na música existe uma coisa assim, brusca, violenta, perigosa e simultaneamente fascinante. Uma sequência curta de notas que, quando tocadas com o ritmo e a distorção certas, nos provoca um frémito pela espinha abaixo – como que evocando o cheiro do perigo e a sedução do pecado. Chamamos-lhe riff e o riff é o santo Graal do rock'n'roll, a encarnação audível do seu poder extremo. O rock, como sabemos, é politeísta, e já teve a sua mão-cheia de deuses. Mas de 2005 para cá, não há guardiões do riff como os Black Mountain.

Isto porque 2005 foi o ano em que a banda canadiana lançou o disco de estreia homónimo, hoje um clássico, que de imediato os qualificou como mais extraordinários representantes do poder do riff, como inesperada e espantosa emanação do martelo pneumático que movia o rock na década de 1970 ou, no caso dos conservadores, como juventude barbuda e barulhenta que devia era aprender a tocar violino.

Esperámos 11 anos desde Black Mountain, o disco de estreia, mas finalmente temos direito aos Black Mountain em Portugal. E por uma vez sentimos imensa alegria em dizer-vos que nos próximos dias vai haver tempestada da grossa.

Já houve chuva da grossa dia 19 no Solar da Graça, em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores, num concerto incluído no festival Tremor. Uma semana depois, nova aparição, desta feita no Hard Club, no Porto. E por fim, na segunda-feira dia 28, no MusicBox, em Lisboa, a terceira presença consecutiva dos Black Mountain em Portugal. A monção vem carregada: na bagagem eles trazem IV, que como terão notado é o quarto álbum de originais, e apesar de algumas incursões ligeiramente mais atmosféricos e a ocasional canrtiga mais lenta não apresenta substanciais diferenças face ao reportório anterior. Mas: é o primeiro álbum em seis anos. Seis anos. Seis.

“Depois do Wilderness Heart [o disco de 2010] queríamos parar um pouco”, diz Jeremy Schmidt, o homem que nos Black Mountain se encarrega de, com um baixo, manter a arquitectura das canções intacta, enquanto os rapazes das seis cordas torpedeiam tudo em volta. “Andávamos a fazer muitas digressões e também tínhamos – e temos – outros projectos musicais fora do espectro dos Black Mountain e queríamos trabalhar nisso”. 

Da forma que Jeremy conta, a coisa resume-se assim: foram bater uma soneca e de repente, “há coisa de ano e meio, dois anos”, notaram que já havia passado algum tempo e decidiram trabalhar em IV. Tudo certo, amigão, porém: ninguém tira uma soneca de quatro anos e meio. Excepto a Bela Adormecida, claro.

Ora, isto traz preocupações ao pacato cidadão que labuta cinco dias por semana de modo a que no fim-de-semana possa ser um desbragado ser alcoolizado rockando ao som de relâmpagos num clube mal iluminado em cujas casas de banho se transaccionam fluidos corporais. O pacato cidadão pondera: “Mas se estiveram quatro ou mais anos sem um ensaio que fosse será que ainda sabem tocar? Será que estavam todos sintonizados na mesma onda? Ou terá o baterista tocado afrobeat, enquanto o teclista se apaixonou por Bach, o baixista se entregou ao reggae, o guitarra-ritmo ao hardcore e o vocalista ao bel-canto?”. É, convenhamos, uma preocupação mais que legítima para quem vai largar uma pipa de massa por um bilhete.

Ruído controlado
Para descanso de todos nós, Jeffrey assegura que não se apaixonou pelo reggae e, de certa forma, tudo se mantém igual no seio dos Black Mountain: “A banda tem uma identidade que é de certo modo autónoma aos membros. Mudámos de baixista, aliás, tivemos de experimentar dois até escolhermos um, mas rapidamente regressámos àquele som. Nós relacionamo-nos é com o som, não com as pessoas. Claro que a vida continua e as pessoas vão mudando, mas quando estamos ali na sala de ensaios, quando nos juntamos, essa identidade volta e o que quer que seja que cada um de nós ande a ouvir acaba assimilado pela banda. Porque no fundo a dinâmicas dentro da banda é sempre a mesma.”

Claro que não é exactamente assim – algumas coisas mudam. Por exemplo, ao contrário do que acontecia quando deram início à actividade conhecida por provocar-trepidações-com-um-PA os Black Mountain já não vivem todos em Vancouver (Canadá); agora Stephen McBean (o guitarrista e vocalista) passa a maior parte do seu tempo em Los Angeles. Quando querem ensaiar têm de combinar antecipadamente, de modo que todos possam organizar a sua vida e encontrarem-se num determinado local.

“No fundo”, desabafa Jeffrey, “é como se disséssemos 'Vamos divertir-nos daqui a duas semanas'. Não podemos fazer o que fazíamos antes, quando nos telefonávamos e combinávamos encontrar-nos e uma hora depois estávamos a tocar”. Isto, diga-se, é a coisa menos rock'n'roll que se pode ouvir de uma semi-estrela de rock'n'roll, mas segundo Jeffrey o rock'n'roll, nos dias que correm, “é menos glamouroso do que parece”. E se tipos como os Black Mountain continuam a criar longas canções em torno de riffs marados é apenas porque não sabem “que mais fazer excepto fazer barulho. Não temos jeito para mais nada”.

Convém explicar a quem por alguma razão tenha passado ao lado da música dos Black Mountain que este ruído é controlado. Avancem até aos cinco minutos e muito de Mothers of the sun, o primeiro tema de IV: há órgãos e palmas por trás das duas vozes e do riffalhão redondo que funciona como âncora da cantiga. Acresce dizer que anda por ali um sintetizador que foi vanguarda algures na década de 1970. Não se pode ter medo em abordar este tema: o som dos Black Mountain contém uma severa porção de reacionarismo. Que sentido faz criar música à 1976 quando já vamos no ano de 2016?

“Não faço ideia”, responde Jeffrey, depois de uma pausa para pensar. “Estamos muito distantes das Ladies Gaga deste mundo, a tocar piano nos Oscars. Onde é que um tipo encaixa no mundo do Facebook e  do Twitter quando toca com um amplificador que foi criado em 1963? Não sei, o mundo acumula coisas velhas e novas e mistura-as”.

Acumula e volta a acumular, diga-se. Por exemplo, Black Mountain, o primeiro disco, pode voltar a ser acumulado desde o ano passado, quando a Jagjagwar, editora dos Black Mountain, resolveu reeditar o álbum, que passados todos estes anos se tornou num disco iconográfico, num clássico.

“Isso foi muito estranho, meu”, exclama o homem das quatro cordas. “Antes de mais: nunca pensámos em fazer um clássico, nunca pensámos que o disco se tinha tornado clássico e, para te ser sincero, só reparámos que tinham passado dez anos quando a editora propôs reeditar o disco, porque ele tinha muita procura e não estava disponível”.

Pega-se numa guitarra em miúdo porque se gosta de barulho e cerveja (e muito possivelmente raparigas) e não se quer ter um emprego das nove às cinco e quando se dá por ela é-se o autor de um dos discos mais respeitados da última década. Sendo que não foi pelo “respeito” que se começou a fazer rock’n’roll – o respeito é, até, um conceito alheio ao rock’n’roll. Que raio faz um rocker com respeito? As coisas são simples: no mundo de um rocker, tudo o que não dá para beber nem para fumar é inútil.

 “Sempre que se comemora uma data redonda destas – bom, parte-se do princípio que fizeste alguma coisa boa. Mas uma coisa assim também obriga a reflectir – sobre o que fizeste e sobre o tempo que passou e sobre o que ainda podes fazer.  E obriga-te a ouvir – nós tivemos de ouvir o disco para o poder tocar e  isso permitiu-nos perceber qual foi o início da banda”.Nesse sentido – mais que no do respeito – a reedição de Black Mountain foi boa para a banda, porque os ajudou a perceber como começaram. Jeffrey chegou a uma simples conclusão: “Éramos muito soltos. E como estávamos a fazer este disco, isso acabou por entrar no processo – ficámos todos com vontade de fazer qualquer coisa solta e experimental”.

Isto pese embora Cemetery breeding (sétimo tema de IV) poder ser visto como (quase) uma balada, (quase) pop , ou pelo menos o mais próximo que eles já estiveram da pop, e lembrar mais (por exemplo) os Cure que os Black Sabbath. Atenção: é uma bela canção, mas será curioso ver como os fãs reagem a letras como “You’re my everything, I will love you forever”.

Provavelmente não pensarão nisso, pelo menos nos concertos. Hão-de estar a viajar pelo espaço durante as jams que os Black Mountain tanto adoram, ou a abanar violentamente a cabeça, quando o riff assim o pedir. É aproveitar, é aproveitar enquanto dura. Porque, como diz Jeffrey, a música dos Black Mountain “vem de um lugar distante no tempo e não tem lugar neste mundo contemporâneo. Está numa cápsula enterrada algures. Mas está muito próxima dos nosso corações.

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