A crise não é "dos refugiados"

O pior é que está também mesmo em causa a segurança dos europeus.

A crise que a Europa vive não é "dos refugiados", não acontece por causa dos refugiados, que representam menos de 1% da população da UE, enquanto num pequeno país como o Líbano já chegam a 1/4 da população: a crise é, de facto, europeia. Por falta de Europa. Os refugiados são também vítimas dessa falta, que explica muito da desordem global.

UE e Estados-Membros têm de assumir a sua quota-parte de responsabilidade pela incapacidade de enfrentarem, com coordenação e em coerência com os princípios fundadores, desafios externos e internos em que as linhas divisórias se esbatem. Forças xenófobas e anti-europeias por essa Europa fora alimentam-se da insegurança sentida pelos cidadãos: por causa do terrorismo, do afluxo de refugiados, da guerra na vizinhança, mas também devido a políticas desreguladoras e destruidoras de emprego e do Estado social.

E o pior é que está também mesmo em causa a segurança dos europeus. Não porque refugiados a fugir da guerra e da barbárie sirvam para infiltrar terroristas: eles já estão na Europa – mais de seis mil "foreign fighters" ("combatentes estrangeiros", como responsáveis em negação insistem em designá-los) ao serviço do chamado "Estado Islâmico" são europeus, tal como todos os atacantes em atentados terroristas cometidos na Europa. Mas porque sujeitar homens, mulheres e crianças pedindo protecção humanitária a tratamento degradante e desumano, como hoje vemos em solo europeu, alimenta ressentimentos e dará mais recrutas a extremistas – a acrescer às "gerações perdidas" de crianças e jovens impedidos de ir à escola pela guerra e sem escolas em campos de refugiados.

A falta de Europa sente-se na Política Externa e de Segurança Comum e na Política Europeia de Segurança e Defesa desdenhadas pelos Estados Membros, ao deixarem escalar guerras e conflitos na vizinhança, na ilusão de poderem desviar o olhar. Sente-se nas contradições quanto à Política de Segurança Interna, à Política Comum de Asilo e à Agenda Europeia para as Migrações, esquecendo as lições da História que levaram à criação da UE. Perante uma Comissão Europeia impotente, por não ter agido mal a Hungria começou a erguer barreiras de arame farpado: reina a impunidade para a Dinamarca que confisca bens a refugiados, ou para a Áustria que organizou o boicote às fronteiras comuns de Schengen, asfixiando a Grécia e encurralando milhares de refugiados.

Portugal deve permanecer firme na defesa de Schengen – sabemos que fronteiras nacionais não se controlam por decreto. Sabemos que nenhum país sozinho pode fazer face aos desafios humanitários, de segurança e outros, de natureza transnacional, com que estamos confrontados – do terrorismo à "guerra híbrida", com actores estatais e não-estatais capazes de instrumentalizar as redes sociais ou planear ciber-ataques contra infra-estruturas críticas.

Portugal deu exemplo de solidariedade indo buscar refugiados à Grécia em articulação com o Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo (EASO). Pode e deve organizar mais voos e acelerar a reunificação familiar (desde logo dos estudantes sírios já entre nós, através da Plataforma promovida pelo ex-Presidente Jorge Sampaio).

No Conselho Europeu Portugal tem de exigir que se cumpram as decisões sobre repartição e recolocação de refugiados. E deve apoiar ajudas financeiras para os Estados Membros em função do grau de resposta à emergência, sem sobrecarregar mais os cidadãos: integrar os refugiados justifica vencer resistências à aplicação do Imposto sobre Transacções Financeiras e emitir "eurobonds" para financiar orçamentos nacionais e "recursos próprios" da União.

Deve organizar-se a apresentação de pedidos de asilo humanitário nos países em que se concentram os refugiados, fazendo uso das redes consulares e de embaixadas, inclusive para organizar transporte para os requerentes aceites: a criação de vias legais e seguras para refugiados e migrantes é o único modo de não continuarmos a alimentar o negócio dos traficantes de seres humanos.

A Turquia devia ser parte da solução para esta crise, mas é preciso reconhecer que também é parte do problema. O Conselho Europeu não se deve deixar chantagear, sob a ilusão de que é possível "outsource" a gestão da crise e obrigações europeias, em troca de facilitar negociações de adesão, liberalizar vistos ou fechar olhos à repressão do governo turco contra os seus cidadãos e media, em despudorada violação dos critérios de Copenhaga. E contra os curdos nos vizinhos Síria e Iraque. Portugal não pode dar aval a uma política de retorno e de readmissões (o grotesco bazar de um sírio aceite na Turquia por outro sírio recebido na UE...) que é ilegal, pois implica violar o princípio de "non-refoulement".

Solidariedade, liderança política e partilha de responsabilidades são indispensáveis para vencermos esta crise, a pior desde a II Guerra Mundial. Este não é apenas mais um teste à credibilidade europeia: é uma verdadeira crise existencial para a UE.

Eurodeputada do PS

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