Outros caminhos para o Sistema de Informações em Portugal

Um órgão de fiscalização confiável constitui a melhor garantia de que os problemas são solucionados no sistema e pelo sistema.

O leitor comum tem o direito de se interrogar sobre o nosso pequeno mas estranho Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), vulgo “serviços secretos” (Secretário Geral, SIS e SIED), quando assiste à imensidade de casos relatados, suspeitos ou confirmados, não desmentidos, que têm envolvido muitos dos seus principais protagonistas, no activo ou retirados.

Não são inéditos casos de abuso de poder e irregularidades várias em serviços secretos europeus. No entanto, a cada irregularidade, seguem-se medidas correctivas que passam inevitavelmente pela substituição dos responsáveis e por uma maior assertividade em matéria de controlo governamental ou de fiscalização, permitindo recuperar a respectiva credibilidade interna e externa.

Em Portugal, como é do conhecimento público, reinam outras lógicas.

Vários argumentos são frequentemente rebuscados pelo status quo e plasmados em publicações e artigos de opinião com o objectivo central de se ampliar o risco da mudança ao ponto de a tornar numa ameaça: a inexistência de fenómenos terroristas em Portugal é a prova da eficácia dos serviços; processos transversais de reorganização e reavaliação dos serviços poderão transformar-se em factores de instabilidade com efeitos sobre a imagem externa do país; os serviços de Informações encontram-se ao abrigo do regime de excepção e os processos de prestação de contas incorrem em potenciais violações do regime de segredo de Estado pelo que os mecanismos de fiscalização terão de ser amigos e superficiais.

A inexistência de terrorismo em Portugal é, felizmente, uma realidade, fruto de factores de diversa índole mas prioritariamente às missões das forças e serviços de segurança no âmbito do sistema de segurança interna. A qualidade dos Serviços de Informações avalia-se não pelo argumento do terrorismo mas pela sua capacidade de recolha, análise e previsão. O produto materializa-se na produção de relatórios destinados aos órgãos de soberania e, em especial, às pastas governamentais de “soberania”, seja segurança interna, defesa ou negócios estrangeiros. Questionem-se “clientes” ou utilizadores do produto da Intelligence nacional sobre a utilidade das informações maciçamente produzidas e ter-se-á uma resposta clarificadora. A usabilidade da Intelligence deve constituir, por definição, a sua razão de ser.

Os riscos resultantes de reestruturações internas no sistema e nos serviços de Informações tem sido outra das falácias à qual, pelos vistos, o poder político tem sido sensível. Quem olhar para o actual SIRP (2004 e 2007) percebe, desde logo, que se trata de uma orgânica pesada e dispendiosa e porque criou um secretário-geral que relegou o cargo de director dos serviços (SIS e SIED) para um plano menor, factor incompreendido pelos serviços congéneres. A última proposta legislativa tende mesmo a complicar ainda mais um sistema que deveria pontuar pela agilidade e não por unidades orgânicas rígidas e por uma hierarquia funcional de pirâmide invertida. Para compensar o fracasso da fusão no início dos anos 2000, inventou-se um secretário-geral, aproximando-se a cúpula do chefe do Governo (cuja disponibilidade em tempos de primado absoluto da economia será sempre reduzida e cuja exposição directa constitui, como já se viu, uma debilidade) mas afastaram-se os serviços dos shareholders mais directos, retirando-lhes operacionalidade. Esta solução falhou pelo preço a pagar no Orçamento de Estado, pela avaliação dos resultados pelos destinatários e pela queda da tão propagada credibilidade dos serviços. A limitação do mandato do secretário-geral do SIRP deverá assim, prioritária e simbolicamente, constituir a primeira de várias iniciativas prévias a uma reforma mais profunda. Em democracia, como recentes casos nos têm demonstrado, a não eternização dos dirigentes nos cargos, em particular em sistemas excepcionados do quadro geral da administração pública, deverá constituir a regra sem excepção.

A instrumentalização da “excepcionalidade” é outra das falácias mais curiosas da nossa cultura de Intelligence. Desde o mais insignificante processo administrativo, o Segredo de Estado constitui um extraordinário instrumento para que nada mude porque nada se poderá revelar. Esta metodologia reflecte-se fortemente nos mecanismos previstos de fiscalização política dos serviços de Informações, exercida pelo Conselho de Fiscalização do SIRP, com sede na Assembleia da República. O fracasso destes mecanismos – mas não por falta de competências específicas do Conselho cujo alargamento tem sido uma constante a cada revisão da lei - são evidentes. Curiosamente, também aqui nada aconteceu em matéria correctiva: não foram explorados modelos alternativos de controlo e de fiscalização, nem encontradas as causas para a respectiva ineficácia. Não há fiscalização eficaz sem tensão “saudável” entre fiscal e fiscalizado. Esta tensão não existe em Portugal como existe em países como o Reino Unido, França ou o Canadá. Parece, por tudo isto, ser tempo de se explorarem modelos de fiscalização que não se sustentem no parlamento mas que possam ser exercidos por uma entidade externa (“ad hoc”, se quisermos), cuja composição que não traduza os equilíbrios político-parlamentares, focando muita da sua atenção não apenas na produção escrita dos serviços mas no respectivo funcionamento – desde processos de recrutamento, nomeações, operações até gestão orçamental, onde se incluem as despesas operacionais. O papel do Presidente da República, até enquanto utilizador do produto dos serviços, poderá assumir um papel mais activo na prevenção e correcção de desvios no SIRP por via de um órgão de fiscalização diferente do actual.

Na verdade, uma fiscalização eficaz permite dotar os serviços, pelo reforço do grau de confiança no sistema, de uma outra legitimidade para reclamar os meios e instrumentos actualmente interditos por lei (por exemplo intercepção das comunicações) mas essenciais na prevenção e combate às ameaças.  

Um órgão de fiscalização confiável constitui também a melhor garantia de que os problemas são solucionados no sistema e pelo sistema. Mas um sistema que deverá existir, nas suas várias vertentes, para funcionar na prossecução do interesse público.

Consultor em inteligência estratégica

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