Karima Mansour dança nas nossas cabeças

Mulher, muçulmana, vinda do Médio Oriente, não se apresenta no Festival Cumplicidades para carregar nos gestos reflexões sobre democracia ou revolução. Who Said Anything About Dance?! começa à secretária e passa-se, em grande parte, dentro de cada espectador.

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Karima Mansour começa por pedir paciência ao seu público. Está sentada num extremo do palco, ao computador, a terminar o preenchimento de formulários necessários para a candidatura a apoios para um espectáculo de dança. Neste desabafo inicial, em que se vira para a plateia e se justifica com um prazo iminente, está resumido quase todo o espectáculo Who Said Anything About Dance?! É num patamar constante de expectativas prévias ao próprio espectáculo que tudo ocorre, desde o momento de teorização que antecede qualquer desenho de movimento (e que se torna por obrigação a própria prática criativa) até à descrição da idealização de algo que nunca chegará a existir (uma vez que os planos se fazem para meios que depois se provarão inexistentes). Who Said Anything About Dance?! é o espectáculo de dança que precede o espectáculo de dança, é uma espécie de comédia de enganos num palco pensado para uma coreografia que quase não surge e que lida o tempo todo com as expectativas, destruindo-as ou cumprindo-as apenas o tempo suficiente para as tirar do caminho.

Karima Mansour está sentada ao computador a preencher formulários com perguntas reais que, nos últimos anos, ocupam muito do seu tempo enquanto bailarina, coreógrafa e directora do Centro de Dança Contemporânea do Cairo. Perguntas como os desígnios maiores que o seu projecto se propõe alcançar, coisas simples como se pretende “aumentar a capacidade mútua de criar processos e redes sustentáveis entre actores que usem a cultura e outras ferramentas criativas para promover uma maior consciência de valores democráticos ou direitos humanos” ou se aposta em “melhorar oportunidades de liberdade de opinião e de expressão através de um maior acesso a meios culturais e de expressão artística”.

Os objectivos, de certa forma, estão já traçados e detalhados, Karima tem de se encaixar e encontrar o quadrado perfeito onde colocar um X e adequar a sua criação a esses critérios. Folhas e folhas disto, um corpo de bailarina a exercitar mais as mãos no teclado do computador do que qualquer outra parte do corpo. Um dos pés, às vezes, treme – mas é de ansiedade. Dias e dias disto, sentada numa cadeira. “Tive um professor que me falava sempre da dança contemporânea e da cadeira”, recorda. A cadeira que invadiu os palcos e por lá ficou a habitar coreografias sem-fim. “Agora percebo o que ele queria dizer”, ironiza a coreógrafa egípcia, que se apresenta a 11 e 12 de Março, no Espaço Alkantara (Lisboa), integrada no Festival Cumplicidades.

“Nos últimos três anos, por causa do Centro de Dança Contemporânea e da Revolução [Primavera Árabe], fui sugada por este mundo administrativo, o mundo da gestão cultural, da angariação de fundos e de todos estes formulários”, confessa Mansour ao Ípsilon. “Fui-me afastando, aos poucos, do trabalho artístico e do processo criativo, afogada que estava no meio de papéis.” Era este o mundo de Karima Mansour quando lhe aterrou no colo um desafio lançado por Olivier Dubois, do Ballet du Nord, para criar uma nova peça. “Oh meu deus, será que ainda sei fazer isto?”, perguntou-se, olhando para um corpo que, mais do que desejava, se habituara a viver na tensão diária dos formulários e menos na exploração do movimento. Ganhara outros automatismos, parecia ter desaprendido a liberdade de movimentos, estava perro. “Para criar algo tenho de me sentir ligada, tem de haver alguma coisa que me emocione, que me pareça relevante e urgente”, diz. E voltou a olhar-se sentada numa cadeira, a matraquear com os dedos palavras e conceitos justificativos daquilo que pretendia fazer e, na verdade, não estava a fazer. A dança, a acontecer nalgum sítio, acontecia apenas na sua cabeça e na projecção futura que fazia (também isso está em Who Said Anything About Dance?!).

“Acabei por perceber que estava tudo à mão – esta loucura e esta pressão enorme colocada sobre um artista, as expectativas, aquilo que nos é exigido que façamos e saibamos, as respostas que somos obrigados a fornecer, os textos e perguntas absurdos a que temos de dar resposta. Quero simplesmente dançar, fazer o meu trabalho e estão sempre a perguntar-me pela democracia ou pelo estado disto e daquilo – é importante, claro, mas por que há esta expectativa de que os artistas sejam as únicas pessoas capazes destas transformações?” Karima, que dança num impulso de questionamento, queria revoltar-se contra o facto de lhe serem exigidas, como ponto de partida, as respostas a que ela não pretende chegar em ponto algum das suas obras.

Três coordenadas
Ultrapassada a exasperação crescente com o seu lugar sedentário, sempre à sua espera no palco de Who Said Anything About Dance?!, Karima Mansour descreve a cena inicial e final que tinha imaginado para uma peça que é e não é esta a que assistimos. A essa peça só teremos acesso pela descrição de um longo vestido que a transformaria numa árvore rodeada de gente ou de uma chuva vinda do céu que poria fim à apresentação. E, num estranho gesto de partilha, a dança, o movimento, a extensão do acto criativo passa a existir da única forma possível numa produção com escassos meios – da cabeça da coreógrafa e bailarina passa para as cabeças que assistem na plateia. Uma ideia alimentada tanto pelo interesse concreto de Mansour na fronteira diluída das projecções entre intérprete e público, implicando o mais possível os espectadores na obra, quanto no statement deste acto de substituir luzes, figurinos e toda uma performance imaginada ao pormenor pelas palavras que a sugerem.

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A interpelação do público não se esgota nesse segmento. Karima Mansour sabe perfeitamente o que é esperado dela a partir de três coordenadas simultâneas: mulher, muçulmana, Médio Oriente. Para muita gente, avisa-a a experiência de 20 anos, este triângulo traz agrafada uma promessa de dança do ventre que, por mais que o seu percurso a insira numa criação contemporânea, não consegue afastar. Em vez de passar 50 minutos a tentar provar que a sua linguagem não corresponde a esta miragem de exotismo pré-cozinhado, Mansour despacha o assunto trazendo-o à baila, quase o esfregando na cara da assistência, como que dizendo “se é disto que estão à espera, tomem lá e não me chateiem mais com isto.”

Aquilo que inquieta Karima é “o sentimento de que o Ocidente se apropria da dança contemporânea, acredita que lhe pertence e que quem se envolve neste tipo de trabalho deve corresponder a um determinado modelo”. Karima quer apenas ser observada com o mesmo olhar que se empresta a um estranho sem depreender que já se sabe tudo sobre ele/ela com base nos tais três simples factos. Nem que, para isso, tenha de se sentar a uma secretária e dançar, sobretudo, dentro das nossas cabeças.

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