Zika e o aborto: agora é que são elas

O debate instalou-se e propaga-se cada vez mais à escala internacional. As reivindicações e conquistas feministas vieram para ficar. O vírus do mosquito Aedes aegypti assegura o primeiro passo para a despenalização do aborto, mas muitos mais estão por dar

Nacho Doce/Reuters
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A epidemia do vírus Zika tem estado na ordem do dia. A sua rápida propagação já obrigou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar emergência internacional. A forte correlação entre o vírus e a microcefalia nos recém-nascidos, ainda que não esteja cientificamente comprovada, motivou países como o Brasil, Colômbia, Jamaica, Equador e El Salvador a aconselhar as mulheres a não engravidar num período de até dois anos, enquanto os médicos procuram uma forma de combater o vírus.

A recomendação de evitar engravidar pode ser compreensível quando lidamos com um vírus cujas implicações a medicina ainda desconhece. O ridículo da questão, contudo, e sobre o qual pretendo incidir é precisamente sobre a concretização deste “não engravidar”.

Segundo a ONU, na América do Sul e América Central — uma das regiões mais afectadas pelo vírus — 24 milhões de mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos modernos. A divulgação sobre estes métodos é praticamente inexistente e o recurso ao planeamento familiar é suprimido pelo estigma social. Estes obstáculos, para além de económicos, são também sociais e culturais cuja responsabilidade recai, pelo menos em parte, sobre a enorme influência conservadora da Igreja Católica na região.

Segundo o Instituto Guttmacher, especializado em saúde sexual, 56% das gravidezes na América Latina e do Sul não são planeadas. Estima-se que dos 4,4 milhões de abortos anuais realizados nesta região, 95% sejam clandestinos. Como consequência, 900 mulheres morrem anualmente devido a complicações. Sete países — Chile, República Dominicana, El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e Suriname — proíbem o aborto em quaisquer circunstâncias, mesmo em caso de risco da vida da mãe, de deficiência profunda do feto ou de violação.

Em El Salvador, onde segundo o Instituto Nacional de Medicina Legal de El Salvador uma mulher é violada a cada quatro horas, o acesso a métodos contraceptivos é extremamente limitado e o aborto punível até 50 anos de prisão, o Governo pede às mulheres que não engravidem. Fia-se, portanto, na abstinência sexual.

Enquanto a ONU defende que países afectados pelo Zika devem garantir acesso à contracepção e ao aborto, a Igreja, anacrónica como de costume, continua a ser protagonista nos entraves à implementação destas medidas. Pela voz do Papa, recentemente regressado do México, reitera-se que o “aborto é um crime”, rejeitando-o em quaisquer circunstâncias. A grande "inovação" diz respeito ao uso de contraceptivos artificiais que “não são um mal em absoluto” quando usados em circunstâncias extremas, como é o caso da prevenção do contágio de vírus, como o HIV. Já no que respeita ao Zika, os votos do Papa são dirigidos aos cientistas, enquanto sugere a "castidade às mulheres".

Esta recomendação direccionada ao feminino, satírica por certo, mas não tão rara como se possa pensar, ganha mais ironia após a recente descoberta da transmissão do vírus por via sexual. Vamos, então, alargar a recomendação de abstinência sexual até 2018 para o masculino? Parece irreal quando constatamos que ainda nos dias de hoje se sugere que o papel da mulher na sua sexualidade se limita ao acto reprodutivo. Mas ao mesmo tempo que nos é apresentada esta personagem pintada de passiva e inerte, recai sobre ela a exclusividade da responsabilização e culpabilização. Se sugerir a castidade soa absurdo, da mesma forma soará a recomendação “mulheres, não engravidem”, como se todas as gravidezes dependessem de um "milagre" como o da "virgem" Maria. Muito pelo contrário, este processo requer, geralmente, uma responsabilidade partilhada dependente também do contributo da célula sexual masculina — o espermatozóide.

Mas o vírus do Zika trouxe consigo mais do que estávamos à espera. Com ele, retomou-se o debate sobre o aborto, sobretudo nestes países cujas leis permanecem estagnadas há demasiado tempo. No Brasil a polémica foi instalada. Diversos grupos feministas (como a Anis) têm conquistado voz no espaço público e a ala conservadora (que continua a ganhar influência) treme com a possibilidade da despenalização do aborto para casos de microcefalia diagnosticada no feto.

Entretanto, o colectivo internacional Women on Web divulga publicamente que está a enviar comprimidos abortivos para estas mulheres e pede para que deixem de ser interceptados pelas alfândegas. Certo é que a permissão do aborto cheia de reticências e asteriscos não apaziguará todo um movimento que agora se intensifica à escala internacional. Mujeres Creando é um colectivo feminista anarquista boliviano que tem garantido a sua presença em várias frentes nas suas lutas contra o sexismo e patriarcado institucionalizados. Já em 2014 levavam as suas acções até ao Brasil, participando na 31.ª Bienal de São Paulo. Se as suas produções artísticas costumam ser suficientemente irreverentes e mediáticas, esta conseguiu estar novamente à altura das expectativas. “Contra a ditadura do patriarcado sobre o corpo da mulher”, apresentaram uma estrutura metálica com pernas abertas, vulvas e úteros, nos quais uma pessoa pode entrar, estar e sair: “Espaço para abortar” foi o nome dado pelas activistas à sua obra. 

O debate instalou-se e propaga-se cada vez mais à escala internacional. As reivindicações e conquistas feministas vieram para ficar. O vírus do mosquito Aedes aegypti assegura o primeiro passo para a despenalização do aborto, mas muitos mais estão por dar. E a profundidade da questão não se fica só por aqui. A discussão sobre o acesso ao aborto como uma questão de classe (e com uma forte correlação com o racismo) está igualmente a expandir-se. Na América do Sul e Central, os redutos 5% de abortos efectuados com condições de higiene e segurança implicam custos que só mulheres com rendimentos elevados conseguem suportar. O aceso a estes rendimentos é também denunciador das desigualdades motivadas pelo "privilégio" branco. As restantes 95% ficam de fora no acesso a estes direitos e cuidados imprescindíveis.

Pontos práticos directamente relacionados com o Zika, como o acesso à informação, a métodos contraceptivos modernos e ao aborto, exigem uma premente resolução que deverá ser alargada a todos os países. Ainda assim, importa remeter o discurso para a causa central: a emancipação. Impera a necessidade de encarar o sexo e os direitos reprodutivos à luz do século XXI, livres de concepções redutoras e opressoras. Que a agenda deste novo século se abstenha de controlar a mulher e o seu corpo: já vamos com 16 anos de atraso!

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