O duro fado de Portugal na guerra do mundo

Há 100 anos a Alemanha entregava ao Governo uma declaração que arrastava Portugal para a Grande Guerra na Europa. Mais do que uma inevitabilidade, a guerra foi uma opção política. Os custos económicos e humanos foram gigantescos. Como vantagem, só uma: as colónia continuaram portuguesas

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A última carícia antes da partida para a frente de guerra na Flandres, em França, numa das fotografias mais icónicas da participação portuguesa na Grande Guerra. Joshua Benoliel/Arquivo Municipal de Lisboa

Na manhã de 9 de Março de 1916, o Barão Friederich Von Rosen, embaixador do Império Alemão, desloca-se ao palácio das Necessidades com um documento terrível na mão: uma declaração de guerra. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, recebeu a declaração e é provável que não tenha esboçado o mínimo trejeito de surpresa. Há pelo menos 15 dias que o Governo esperava por este desfecho, depois de ter apreendido 72 navios alemães que tinham procurado refúgio nos portos da metrópole e das colónias. E há quase dois anos que o seu chefe, Afonso Costa, desejava ardentemente a guerra que, para lá de o destruir politicamente, deixaria o país arrasado e ingovernável. Naquele dia de há 100 anos, Portugal acabava de entrar na Grande Guerra e a partir daí nada foi como dantes. Os desastres na Flandres e em África, a “crise das subsistências” e a violência social instigada pela fome tornaram a vida dos portugueses num inferno permanente. Quando a guerra acabou, em Novembro de 1918, veio a gripe espanhola e a ressaca. Até que, no dia 28 de Maio de 1926, o general Gomes da Costa parte de Braga à frente de um golpe militar que porá um ponto final na turbulência da Primeira República e abrirá portas à longa era do salazarismo.

Quando o conflito eclodiu na Europa, em Agosto de 1914, Portugal andava ainda à procura de uma terapia política capaz de consolidar um regime que, quatro anos antes, acabara com quase oito séculos de monarquia. Para as facções mais radicais do Partido Democrático de Afonso Costa, a visão da guerra era uma oportunidade para o conseguir. Nessa ideia, não entrava a conta do sofrimento humano ou do custo económico– aliás, na Europa todos acreditavam que seria um conflito limpo, que acabaria lá para o Natal; o que importava era garantir o reconhecimento internacional do novo regime numa Europa monárquica, era apagar a imagem da repressão aos sindicalistas ou a existência de presos políticos, era desviar as atenções da perseguição à Igreja, era conseguir protecção internacional para as ameaças veladas vindas de Espanha, que apontavam para a possibilidade de o rei Alfonso XIII querer acabar com a “anarquia” da República através de uma intervenção militar. A guerra, considera o historiador Filipe Ribeiro de Menezes, serviria também “para acelerar a transformação material do país” e “as mentalidades da população”.

Nos primeiros meses do conflito, porém, só a defesa das colónias podia alimentar esse projecto de regeneração nacional. Portugal sabia que em 1898 e 1912/1913 a Inglaterra e a Alemanha negociaram pactos secretos para dividirem entre si Angola e Moçambique. A necessidade de dinheiro para sustentar o país, acreditavam essas potências, era a melhor forma de retirar a um país periférico, pequeno e pobre a soberania sobre as colónias vastas e ricas das duas costas africanas. Dias depois da deflagração da guerra, no dia 24 de Agosto de 1914, um ataque alemão ao posto de Maziúa, na fronteira Norte de Moçambique, no qual morreu um oficial português, mostra às autoridades nacionais que as colónias podiam estar em perigo. Nesse mês, o Governo decide enviar para Angola e Moçambique as primeiras expedições para defender as linhas de fronteira com os alemães.

Mas entre os governos democráticos, a ideia prevalecente era a de que as colónias se defendiam na Europa. A participação na guerra nas selvas do Niassa ou nas savanas do sul de Angola era menos gloriosa do que na frente mortífera da Flandres. Com excepção do governo de Pimenta de Castro, nos primeiros meses de 1915, toda a estratégia de Lisboa se encaminhava no sentido da beligerância. Teixeira Gomes, o embaixador português em Londres, ia dando conta das dificuldades em convencer a Inglaterra em invocar a Aliança luso-britânica para receber Portugal na guerra. Violando claramente a neutralidade, Portugal ajudava as movimentações de tropas britânicas em Moçambique. No final de 1915 acorda até o fornecimento de canhões Schneider a França. Mas nem isso bastava para convencer os britânicos. Manuel Brito Camacho, líder do Partido Unionista e crítico da beligerância, explicava essa resistência com o “medo” que a Inglaterra tinha de Portugal. “Medo de quê? Dum impulso quixotesco que o levasse a declarar-se beligerante, porque isso seria amarrar às pernas de um gigante, em luta contra outro gigante, um cepo que lhe dificultasse os movimentos, quando ele precisava de tê-los bem livres e desembaraçados”.

O Exército português em 1914 era uma legião desordenada de homens desmoralizados, mal pagos ou nem sequer pagos, mal treinados e mal equipados e chefiados por oficiais que dividiam a sua lealdade entre a República e a Monarquia. Em Janeiro de 1915, o ministro da Guerra confidenciaria a Brito Camacho: “Não digo que [o Exército] tem pouco; digo que não tem nada". O ministro das Colónias queixava-se que, “na verdade, o nosso estado é vergonhoso: sem exército, sem marinha, sem material, sem dinheiro, sem disciplina interna na sociedade e espírito militar”. Em 1915, a percentagem de refractários subira para 32,9%. E os que se resignavam era mais por falta de alternativas do que por devoção. Cunha e Costa, jornalista de O Dia, descreve as fragilidades da moral nos quartéis: “Mais do que qualquer outro soldado, o nosso precisa de comando e oficiais excelentes, porque a sua educação cívica é nula. Para muitos a Pátria nem sequer é Portugal: é a casinha de adobo ou de tijolo, o porquinho, a feira da terra”.

Ainda assim, Afonso Costa queria combater e conseguiu-o ao explorar uma carência britânica. A guerra submarina devastara a marinha inglesa e os 72 barcos alemães estacionados nos portos nacionais tornaram-se alvo de cobiça. As suas 242 mil toneladas representavam mais do triplo da tonelagem da marinha nacional. Finalmente, a 17 de Fevereiro de 1916, o embaixador Lancelot Carnegie informa Lisboa que “o Governo inglês, em nome da Aliança, pede a requisição urgente de todos os barcos inimigos estacionados em portos portugueses, os quais serão usados para comércio português entre Lisboa e outros portos”. Se perder tempo, a marinha portuguesa assalta os navios na manhã de 23 de Fevereiro. A partir desse momento, a guerra era inevitável. Tornou-se oficial há 100 anos, quando Berlim declara que Portugal se tinha transformado num “vassalo da Inglaterra, que subordina todas as outras considerações aos interesses e desejos ingleses”. E na mesma declaração, confirma: “O Governo Imperial vê-se forçado a tirar as necessárias consequências do procedimento do Governo português. Considera-se, de agora em diante, como achando-se em estado de guerra com o Governo de Portugal”. 

Portugal está em guerra consigo próprio (a República é cada vez mais odiada pelas facções conservadoras) e divide-se sobre a guerra que está para começar com as potências centrais da Europa. Afonso Costa tenta apaziguar a crispação política acolhendo no governo os Evolucionistas de António José de Almeida, com os quais fundará a União Sagrada. Brito Camacho, que sempre combateu a guerra europeia, manteve-se à margem. Politicamente, a sua tese africana estava derrotada, apesar de estar em sintonia com a maior parte dos portugueses.  “A defesa do território colonial e a entrada em guerra no teatro africano” eram “os únicos pontos no consenso nacional, tanto a nível das forças políticas como da opinião pública”, escreveu Nuno Severiano Teixeira em “O Poder e a Guerra”, um ensaio fundamental sobre as causas da entrada de Portugal na Guerra. Para a maioria, a guerra em África era uma necessidade; na Flandres era apenas uma opção. Ou um capricho.

Depois de entrar em guerra, Lisboa envia para Moçambique mais uma expedição, a terceira, com cinco mil homens chefiada por um general (Ferreira Gil) que de imediato ocupa o triângulo de Quionga, junto às margens do rio Rovuma e em Setembro ousa até um ataque ao forte alemão de Nevala, que ocupa durante uma semana. A resposta alemã é rápida e letal. A falta de comando, de planeamento ou de treino, a negligência com a alimentação ou a saúde arrasam em poucos meses a mais poderosa expedição que Portugal enviou para África até à Guerra Colonial. Para a Flandres, os cuidados foram redobrados, mas igualmente infrutíferos. Entre Abril e Junho, milhares de homens passaram pela nova base de treino em Tancos para aprenderem por atacado as artes da guerra da era industrial. Em Janeiro de 1917, os primeiros contingentes lá seguiram para Brest. Os barcos que os transportaram eram ingleses, as armas eram inglesas e a sua dependência hierárquica eram para com um comandante inglês. Para a Flandres seguiriam até Novembro (quando as autoridades inglesas decidiram não fornecer mais barcos de transporte) 55 mil portugueses.

Em Lisboa, no Porto ou no Alentejo, a fome tornara-se comum e as greves e os assaltos a armazéns ou comboios com cereais multiplicaram-se. Estava confirmado que Portugal não tinha energia nem recursos para alimentar duas frentes de guerra a milhares de quilómetros de distância. Em 25 de Abril de 1917, o governo da União Sagrada rompe-se e Afonso Costa volta a ser o Presidente do Ministério (primeiro-ministro). O desejo de conquistar em África vitórias para acenar na Europa acaba de vez em Novembro, quando os alemães impõem uma severa derrota aos portugueses em Negomano e transferem a guerra da sua África Oriental (a actual Tanzânia) para Moçambique. Em Dezembro, um golpe militar liderado por Sidónio Pais acaba com os devaneios beligerantes dos Democráticos. Mas o Presidente Rei está de pés e mãos atadas. Tem se manter a guerra e esperar que acabe depressa.

Em Moçambique, as tropas nacionais estavam remetidas à condição de meros ajudantes da força expedicionária britânica comandada pelo sul-africano Jacob Van Daventer. No princípio de 1918, sabia-se que o Corpo Expedicionário Português (CEP), que defendia uma linha de frente que chegou a ter 11 km, estava exausto e que sucumbiria ao primeiro ataque alemão. Os ingleses reconhecem a evidência e marcam a sua substituição para depois do dia 6 de Abril. Nesse momento, os alemães tinham lançado a sua desesperada ofensiva da Primavera sobre a frente de Arras e às 4h15 da madrugada de 9 de Abril de 1918 atacam as linhas portuguesas em La Lys. Apesar de actos isolados de resistência e heroicidade, as previsões do comando confirmaram-se e a barreira defensiva esboroou-se ao final da manhã. Morreram mais de 600 soldados e 7000 foram prisioneiros.

Entre Abril e Novembro de 1918, a data do armistício, as tropas do CEP passaram a repetir na Flandres o papel que os soldados da quarta expedição a Moçambique estavam já a representar: o de simples ajudantes do Exército Britânico. O “fado do cavanço”, que nos conta a frustração de um soldado transformado em cavador de trincheiras, tornou-se o hino dessa subalternidade. Entre a fome, os piolhos, a malária ou o abandono, os soldados portugueses na França ou em Moçambique foram os que mais pagaram o preço de uma guerra convocada pela megalomania política e pelas utopias radicais da transformação republicana. Estando do lado dos vencedores, Portugal conseguiu conservar as colónias na Conferência de Paz. Mas não foi além da recompensa mínima. Por cá, os democráticos ainda regressaram ao poder após o assassinato de Sidónio, em Dezembro de 1918, mas as feridas do radicalismo e da guerra estavam demasiado abertas para que o pudessem conservar. Gomes da Costa, oficial na Flandres e em Moçambique, seria o agregador desse um ódio contra os que quiseram a guerra e impuseram uma humilhação ao país e ao seu Exército. Em 1926, a Primeira República acabava e em breve chegaria o longo reinado do salazarismo.

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