Miguel Torga e a consciência da portugalidade

Autor do livro Portugal foi citado por Marcelo Rebelo de Sousa a realçar as virtudes dos portugueses.

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Miguel Torga Alfredo Cunha

“O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos olhar-nos a frio no espelho da vida. A paixão tolda-nos a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que actuamos na História”. Este é o início da citação de um texto de Miguel Torga de 1987 com que Marcelo Rebelo de Sousa concluiu esta quarta-feira o discurso de tomada de posse como Presidente da República. Quis assim remar contra aquela característica bem portuguesa de minimização das suas virtudes e capacidades, a eterna “inquietação encarnada” de que fala o poeta dos Contos da Montanha.

Em 2006, no discurso que abriu o seu primeiro mandato como Presidente, Cavaco Silva tomou também de empréstimo uma frase de Torga – “nesga de terra debruada de mar” – para qualificar Portugal e a sua vocação marítima, cuja geografia abre um amplo campo de possibilidades que havia que explorar.

A citação de grandes nomes da galeria da literatura portuguesa – Camões, Pessoa, Torga… – é uma prática recorrente nos discursos políticos, e por maioria de razão no caso dos Presidentes da República.

Sabe-se que Ramalho Eanes é também um grande admirador da escrita e da figura de Torga. Não nos tendo sido possível confirmar a presença de referências à sua obra nos dois discursos de tomada de posse do militar-Presidente, coube a Eanes, por exemplo, fazer-lhe o elogio e a entrega da primeira edição do Prémio Camões, na cerimónia do 10 de Junho de 1989. E por diversas vezes se referiu à escrita, e ao exemplo, do escritor transmontano – que uma vez disse ao Presidente: “Seja sério, mas não se leve demasiado a sério”.

“O Presidente Ramalho Eanes é um grande admirador de Miguel Torga, e citou-o inúmeras vezes, mas não posso precisar se o fez nos seus discursos de posse”, disse ao PÚBLICO o general Garcia dos Santos, que foi seu chefe da Casa Militar, acrescentando, de resto, que Eanes “sempre teve o hábito muito forte de citar escritores, portugueses e estrangeiros”, o que resulta do seu grande interesse pela literatura.

Mário Cláudio ouviu o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa e vê no recurso a Miguel Torga algo natural. “Torga é uma personalidade a que se pode recorrer facilmente, porque é uma espécie de consciência da portugalidade”, diz o escritor, lembrando que ele escreveu um livro intitulado Portugal (1950). Mas não deixa de manifestar “alguma surpresa” pelo facto de o novo Presidente ter ido buscar um escritor que, “apesar da sua grande força telúrica, não deixa de ser um ânimo exaltado, um pessimista, sempre a queixar-se de tudo”.

Por outro lado, Mário Cláudio estabelece um paralelo entre Torga e Eduardo Lourenço – que Marcelo convidou para integrar o Conselho de Estado. “São ambos personagens nascidos no interior, representam a interioridade, e tanto a criação poética de Torga como a produção ensaística e filosófica de Lourenço são vistas como consciências da Pátria, das suas raízes”.

Nesse sentido, o autor de Astronomia acha normal que estas duas figuras da cultura portuguesa tenham agora uma presença mais notória no discurso e no imaginário político. Camões – cuja obra Jorge Sampaio citou, no seu discurso de 2001, como “exemplo de um tempo de mudança, incerteza e globalização” – “foi transformado em busto; e Pessoa é um urbano”, diz Mário Cláudio. E acha que no contexto actual, e com a assumida preocupação de realçar “a interioridade e as raízes mais profundas” do país, Marcelo Rebelo de Sousa – que, recorde-se, lançou a sua candidatura presidencial em Celorico de Basto, terra minhota onde tem raízes familiares –, evitaria citar “um poeta estrangeirado e cosmopolita”.

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