O Alentejo cantou queixando-se de Henrique Raposo, que continuará a escrever com atrito

Apresentação do livro Alentejo Prometido foi uma espécie de corolário de uma polémica sobre identidades regionais, redes sociais e liberdade de expressão. Cante Alentejano interrompe evento e palmas distribuíram-se pelos músicos e pelo autor.

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O momento em que a apresentação foi interrompida com cante alentejano Nuno Ferreira Santos
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António Araújo e Henrique Raposo (sentados) e Rentes de Carvalho em pé Nuno Ferreira Santos
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O autor Henrique Raposo Nuno Ferreira Santos
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Henrique Raposo a assinar livros Nuno Ferreira Santos
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Henrique Raposo e Alexandre Soares dos Santos Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

Uma polémica digital, uma petição, muitas crónicas, livros queimados e uma página de ódio no Facebook depois, Henrique Raposo apresentou o seu Alentejo Prometido em Lisboa. Os alentejanos também apresentaram as suas posições – “queixamo-nos cantando”, disse o grupo de cerca de 15 homens que interrompeu o evento envolto em medidas de segurança discretas com cante alentejano vindo de Beja. Um fim de tarde numa livraria repleta de amigos, admiradores mas também de detractores ou de quem, como se descreveu e resumiu Ricardo Araújo Pereira, é “amigo da liberdade”.

“Este livro e os livros que eu vou escrever provocarão sempre atrito, porque eu tenho um olhar camiliano sobre os portugueses”, garantiu Henrique Raposo sobre a divisão entre a visão do país queirosiana de “olhar cínico, mole e brando” de Eça e “o olhar trágico, duro” de Camilo Castelo Branco. Falava no final de quase uma hora de apresentação, encetada pelo escritor José Rentes de Carvalho e que seria passada ao director adjunto de informação do Grupo Impresa, Henrique Monteiro.

Rentes de Carvalho terminava a sua intervenção – em que criticava o facto de Alentejo Prometido se ter transformado “num caso, acendendo paixões que não deviam ter lugar numa sociedade civilizada e democrática” e reflectia sobre origens (as suas, transmontanas, as de Raposo, alentejanas) e sobre um livro que, admitiu, o “perturbou” – quando o mestre Francisco Torrão e os seus companheiros de cante se ergueram. Alentejo, Alentejo pelo grupo  Cantadores do Desassossego, palmas no final e os cantadores deixaram os seus lugares na plateia sentada e saíram da sala depois de terem dado “resposta ao que Henrique Raposo fez” à “dignidade” do Alentejo “com o seu livro”, disse Torrão já no exterior da livraria Bertrand de Picoas.

Alentejo Prometido, do colunista do Expresso Henrique Raposo e editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, está no centro de uma polémica que atingiu o seu pico na semana passada. São 107 páginas em que o autor, num registo autobiográfico, conta a história da sua família alentejana e tece considerações sobre temas que considera intrínsecos ao modo de vida daquela região portuguesa, falando de eutanásia, suicídio, incesto ou da violência sobre as mulheres, entre outros temas. “Um filme de estrada” como descreveu na noite desta terça-feira, em que não falou aos jornalistas mas deixou recados e a promessa de continuar a escrever.

Num tempo em que “falamos demais e lemos de pouco. Para se falar de um livro, é preciso lê-lo”, aludiu. Mesmo “numa época de bullshit, de relativismo, de engraçadismo onde não se pode ter um discurso remotamente sincero sobre nada senão cai o Carmo e a Trindade”, disse ainda Henrique Raposo a propósito da escrita que admira.  

Rentes de Carvalho, no início da sessão, pedira-lhe “que grite contra o Alentejo, que o encare, que lhe faça um manguito”. E ainda assim, “o Alentejo lhe sorrirá”, acrescentou o escritor veterano, adepto da “liberdade da palavra”, enfatizando a importância de se ler antes de se comentar, ironizando sobre a “furiosa maneira” como Raposo “desanca na sua terra e na sua gente”. Como quando escreve que o “suicídio alentejano não é um acto individual, é uma prática colectiva”, um dos temas mais comentados pelos seus críticos.

Desde a sua participação no programa Irritações, da SIC Radical, apresentado por Pedro Boucherie Mendes – que, como Francisco José Viegas, José Diogo Quintela, Bruno Vieira Amaral, Pedro Mexia ou Alexandre Soares dos Santos estava na sala – cresceram as críticas na Internet. O vídeo da entrevista foi partilhado na conta de Facebook da SIC Radical dia 22 e desde então foi visto mais de 800 mil vezes. Os comentários acumulam-se aos milhares. Nascem a página no Facebook Henrique Raposo – o inimigo nº1 do Algarve e Alentejo e uma petição contra a venda do livro, o autor é alvo de ameaças anónimas e queimam-se alguns dos seis mil exemplares.

A fundação optou por reforçar a segurança do evento e, além de agentes da PSP nas imediações, estavam seguranças privados entre a multidão. Os Cantadores do Desassossego juntaram a sua voz ao caso, usando o cante, que “encerra em si todo um factor psicológico, emocional, de amor às famílias, contrastando com o livro”, disse Francisco Torrão, e com a forma como descreve a região, defendem.

Esta terça-feira, no segundo local escolhido para a apresentação da obra – o primeiro, o espaço Tintos e Tintas, saiu de cena com o inflamar do caso – António Araújo, responsável pela colecção na fundação, disse aos jornalistas que “não há motivo para polémicas”. E brincou: ao contrário de outros eventos em que a entidade recorreu aos serviços de grupos de cante alentejano, “desta vez não tivemos de contratar ninguém e agradecemos sempre, em nome da liberdade” de expressão. “Nada melhor do que respeitar as opiniões dos autores”.

Foi esta a tónica de muitas crónicas sobre o caso escritas nos últimos dias sobre o tema e das presenças na apresentação do livro. Ricardo Araújo Pereira, humorista e comentador, diz mal conhecer Henrique Raposo, que, sorri, “pode continuar a dizer coisas abomináveis”. Classifica como “inquietante” o que tem visto no último mês, desde as críticas ao cartaz do Bloco de Esquerda sobre a adopção por casais gay, até ao caso Alentejo Prometido. Um “caldo cultural” em que “desvalorizar este caso não é boa ideia”, frisa ao PÚBLICO. “Uma pessoa deve poder escrever um livro sem haver gente a queimá-los ou ser ameaçado. A liberdade de expressão é para o Henrique Raposo dizer mal dos alentejanos? Sim, também é para isso”, remata.

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