Nikolaus Harnoncourt, o maestro que quis transportar o passado para o presente

Pioneiro do movimento de recuperação da música antiga, o maestro austríaco morreu este sábado aos 86 anos. A sua incansável vontade de arriscar novos caminhos, mudou o rumo da interpretação musical no século XX.

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O maestro fotografado em 2012 AFP / APA / BARBARA GINDL

Conhecido como uma figura-chave do movimento de recuperação da música antiga de acordo com as práticas de execução históricas, mas também pela sua imensa paixão pelas diversas artes e pela incansável vontade de arriscar novos caminhos, o maestro austríaco Nikolaus Harnoncourt morreu este sábado em Viena, aos 86 anos.

Ao longo do século XX, várias foram as personalidades que trouxeram novas abordagens da música do passado, mas não será um exagero dizer que sem o legado de Harnoncourt a história da interpretação musical não teria sido a mesma. A sua relevância está porém para além dessa corrente específica, da qual foi um dos principais pioneiros na década de 1950, juntamente com Gustav Leonhardt, dada a abrangência do seu repertório, que se foi alargando a épocas cada vez mais recentes e contemplava quer agrupamentos com instrumentos antigos, quer as mais importantes orquestras modernas.

A abertura e profundidade do pensamento de Harnoncourt do ponto de vista cultural e musical e as suas interpretações marcantes, por vezes revolucionárias face aos códigos vigentes, trouxeram outra maneira de entender a música do passado e do presente, assente não só nos aspectos que as fontes históricas, os instrumentos antigos e os tratados podiam iluminar, mas também num perspicaz entendimento do Discurso dos Sons, para usar o título do mais famoso dos seus livros.

A uma dimensão mais intelectual, patente nos vários livros e ensaios sobre interpretação, compositores, obras e estilos que publicou, Harnoncourt associava um enorme carisma, que se pode observar não só nas suas actuações artísticas, mas também na forma como trabalhava com os músicos mais jovens.

Vários vídeos disponíveis na Internet, como por exemplo o de uma masterclass em Salzburgo com a Orquestra Juvenil Simón Bolívar, revelam a sua comovente e arrebatada paixão pela música, uma géstica eloquente e uma imaginação prodigiosa nas metáforas textuais extravagantes, por vezes humorísticas, que usava para transmitir os resultados musicais que pretendia obter.

Mas ao contrário do que possa parecer, Harnoncourt não gostava de músicos especializados, pois considerava que tinham “menos abertura de espírito”, conforme disse em várias entrevistas. Foi também um dos primeiros a alertar para o perigo do uso do conceito de “autenticidade” na música, que viria a gerar muitos equívocos e se transformou por vezes em arma de arremesso por parte dos detractores do movimento da música antiga. “A música de museu não me interessa e não tenho nenhuma intenção de realizar visitas guiadas à obra de Bach.” A sua aspiração não era a de recriar o som antigo de forma autêntica, mas transportar o passado para o presente.

Em Dezembro passado, Harnoncourt anunciara que iria pôr fim à sua carreira devido a problemas de saúde. “É uma era que chega ao fim”, disse este domingo Thomas Angyan, director do Musikverein, uma das mais prestigiadas instituições musicais de Viena. “Não imaginei que passasse tão pouco tempo entre o momento da reforma e a sua morte. […] Ele era o original do seu original. Devemos prosseguir a herança musical que nos deixa”, declarou Angyan, citado pelo Le Monde.

A beleza acima da segurança

Nascido em Berlim, a 6 de Dezembro de 1929, Harnoncourt cresceu em Graz, na Áustria. Filho de uma bisneta do imperador Leopoldo II, tinha como nome de baptismo Johannes Nikolaus Graf de la Fontaine und d’Harnoncourt-Unvertzagt. Aluno de violoncelo de Paul Grümmer e de Emanuel Brabec, foi durante vários anos (1952-69) músico da Sinfónica de Viena, mas tinha dificuldade em aceitar as imposições dos directores de orquestra, sobretudo quando não sabiam explicar a razão das suas decisões musicais.

Apesar de se ter transformado num dos mais relevantes maestros do nosso tempo, Harnoncourt sempre recusou o culto da figura do director de orquestra, como se se tratasse de um super-herói. Questionava também as abordagens interpretativas que faziam as obras de Händel soar como se fossem de Brahms. Esse terá sido um dos motivos que o levou a interessar-se pela música antiga, a experimentar os instrumentos de época e a investigar as práticas de execução históricas, processo que conduziu à criação, em 1953, do Concentus Musicus de Viena, em colaboração com a sua mulher, a violinista Alice Hoffelner.

Este foi um dos primeiros agrupamentos especializados com instrumentos de época a actuar a nível profissional. Depois de quatro anos de pesquisas o agrupamento deu o seu primeiro concerto oficial em 1957 e só em 1962 gravou o primeiro disco, editado pela Telefunken (depois Teldec), com música de Henry Purcell para consort de violas de gamba (o próprio Harnoncourt tocava viola da gamba).

Seguiram-se ao longo dos anos 60 e inícios dos anos 70 várias aclamadas gravações música de Bach, como os Concertos Brandeburgueses  e as Suites Orquestrais (com Harnoncourt a dirigir a partir do violoncelo), as Paixões segundo São Mateus e segundo São João, a Missa em Si menor e a Oratória de Natal. Um projecto pioneiro e um marco da discografia foi a gravação da integral das Cantatas de Bach em colaboração com Gustav Leonhardt, que decorreu entre 1971 e 1990. Entre outras particularidades destaca-se a utilização nos naipes agudos do coro, incluindo nos solos, de jovens rapazes antes da mudança da voz como ocorria no tempo de Bach.

Outras gravações marcantes com o Concentus Musicus foram as três óperas de Monteverdi (Orfeo, Il Ritorno d’Ulisse e L’Incoronazione di Poppea), que Harnoncourt dirigiu em Zurique entre 1975 e 1979, contando com as encenações de Jean-Pierre Ponnelle. Este ciclo, assim como a posterior colaboração com o encenador nas óperas de Mozart, tornou-se lendário. Para além do uso de instrumentos de época, a abordagem de parâmetros como a articulação, a ornamentação, as afinações, a dinâmica, o tipo de andamentos e aspectos de retórica musical mostraram estas obras a partir de uma nova luz.

Quando comparamos estas gravações com outras posteriores (algumas do próprio Harnoncourt) não podemos deixar de notar algumas imperfeições técnicas, mas o seu carácter revelador e a sua musicalidade são inegáveis. De resto, a perfeição asséptica nunca esteve nos objectivos de Harnoncourt que, ainda em 2012, numa entrevista à BBC 3, dizia detestar o som da maior parte das orquestra americanas, nas quais “cada nota é tão polida e correcta.” O maestro austríaco sempre gostou de arriscar e dizia que “segurança e beleza não são compatíveis”.

Harnoncourt nunca ficou preso a um estilo ou a repertórios específicos. Ao longo das últimas décadas não parou de diversificar os seus programas e dedicou-se progressivamente a dirigir agrupamentos e orquestras modernas, incluindo as prestigiadas Filarmónicas de Viena e de Berlim, a Orquestra do Concertgebouw de Amesterdão ou a Orquestra de Câmara da Europa, com a qual gravou  realizou gravações de grande sucesso das sinfonias de Beethoven e Schubert.

A música dos séculos XIX e XX foi ganhando cada vez mais terreno no seu repertório, e na viragem para o século XXI Harnoncourt dirigia obras como a Aida, de Verdi, as valsas e as operetas de Strauss e colaborava com intérpretes especializados na música contemporânea, como o pianista francês Pierre-Laurent Aimard (habitual intérprete de Boulez e Ligeti).

Em 2009 surpreendeu com a direcção de Porgy and Bess de Gershwin no Festival Styriarte de Graz. Dirigiu numerosas vezes no Festival de Salzburgo e recebeu numerosos prémios e distinções ao longo da sua carreira. Cerca de 500 gravações, numerosas entrevistas, livros e artigos, constituirão a memória futura de um legado precioso que ilustra também um percurso artístico que é ele próprio testemunho da mudança de atitude perante a interpretação musical. Por um lado, da passagem da música antiga de um campo especializado para o circuito mainstream; por outro, da necessidade de se ter consciência nos repertórios mais recentes das práticas de composição e interpretação que estiveram na sua origem, mesmo quando se usam instrumentos modernos.

"O que realmente desejo é uma maior relação com a música moderna, com aquilo que se escreve hoje; que toda a gente viva ao mesmo tempo com a música moderna e a música antiga", disse Harnoncourt ao PÚBLICO em 1996 por ocasião de uma passagem por Lisboa. 

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