Ó tempo, volta para trás

O PS sabe muito bem o que aí vem e que precisa de ter uma resposta política concertada face às exigências “europeias” e que estão longe de poder ser acomodadas por um qualquer pacífico Plano B.

Quem veja nestes dias um noticiário da televisão sem som parece que o tempo andou para trás. Passos Coelho passeia-se por feiras e encontros de empresários, “inaugura” escolas em autarquias do PSD, tratado como primeiro-ministro, com a postura oficial de um primeiro-ministro, com a bandeira da lapela usada pelos membros do seu Governo e que continua a usar para não deixar dúvidas que se considera ele próprio o primeiro-ministro com direito ao cargo, que outros usurparam numa espécie de golpe de Estado.

O mais interessante é que faz todas estas coisas no âmbito de uma campanha eleitoral interna para a liderança de um partido político, ou seja, uma questão mais do interior do foro partidário não há. Nem sequer é como líder do PSD, logo da oposição, mas como candidato numa eleição interna de um partido. António Costa ao lado dele, informal e com comitivas mais ou menos caóticas, com a clara má vontade dos seus acompanhantes empresariais, parece, esse sim, um candidato em passeio eleitoral. De um lado a pompa do Estado e da função, do outro o aspirante esforçado a um qualquer cargo eleitoral de uma autarquia.

A expressão que usei várias vezes de “primeiro-ministro no exílio” popularizou-se e escapou ao autor, mas corre o risco de ser vista de um só lado, o do bizarro primeiro-ministro que não o é, e não do lado do exílio. Que terra de exílio é esta que se parece tanto com o Portugal do passado recente, como se fosse uma viagem no tempo? Ou não será mesmo o passado e o tempo deixou de se mover e a seta da entropia encravou? Por que razão é que a “velha” política custa tanto a desaparecer?

Esta é uma reflexão urgente, porque um certo facilitismo e complacência que surgiram à esquerda com a vitória política da formação do Governo não correspondem a uma alteração significativa das condições prevalecentes nas vésperas das eleições legislativas. Ou seja, Passos Coelho está bem onde está e é Costa que está numa terra de ninguém que ainda não foi efectivamente ocupada e que corre o risco de nunca o vir a ser. Voltemos à pergunta: por que razão é que a “velha” política custa tanto a desaparecer?

Há várias respostas a esta pergunta e todas complementares. Primeiro, porque existe um considerável apoio popular e eleitoral à política do ex-PaF, há muita bipolarização agressiva. O PaF teve um bom resultado eleitoral no contexto das eleições em 2015 e, em particular, o PS perdeu-as. A legitimidade da maioria que resultou dos acordos PS-BE-PCP é inquestionável como a afirmação de que uma maioria dos portugueses queria mudar em 2015 e votou contra o Governo anterior do PaF. Mas se tudo isto é verdade, nem por isso se transforma numa grande vantagem política, se der origem a um governo defensivo que se comporta como estando sitiado e a forças políticas que o apoiam mais olhando para o seu umbigo do que para a conjuntura geral.

Segundo, porque o PS, permanecendo no terreno da ortodoxia europeia, não se consegue libertar para fazer a política que pretende. Com algumas pequenas concessões e menos rigorismo europeu, podia, mas ninguém lhe fez essas concessões não porque elas significassem uma qualquer revolução na política económica, que continuaria dominada pelo défice, mas pelo facto de hoje a “Europa” ser um instrumento político crucial de apoio aos governos da direita radical, como o PSD-CDS em Portugal, e o PP em Espanha, e como os tempos estão de crise para essa direita, não se pode dar ao luxo de permitir uma débil experiência de que “há alternativa”.

Terceiro, e este é um ponto fundamental que explica a paisagem patronal (mais do que empresarial) dos passeios de Passos Coelho, é que existe uma poderosa coligação de interesses à volta do PSD e do CDS, mais do primeiro, porque é maior, e que esses interesses viveram num paraíso nos últimos cinco anos e estão com síndroma de abstinência do tempo em que o governo lhes pertencia.

Por isso, o país, apesar de ter tido uma revolução política, está longe de sair do terreno da “velha política”, e as enormes pressões nacionais e internacionais, que todos os dias fazem marcação ao Governo lembram-lhe que “não há alternativa”. Todos os dias um relatório nacional ou internacional diz ao Governo de Costa que o “caminho” conduz ao “desastre”, que eles sabem muito bem que ajudam a acontecer com tais “prevenções”. Eu mato-te e digo-te todos os dias que vais morrer.

O Governo anterior também tinha documentos do mesmo teor, só que eram repreensões amáveis, muito mitigadas, porque o Governo era dos “deles”. Quando, em vésperas de eleições, o FMI começou a mudar de tom e a pôr em causa a “obra” do Governo PSD-CDS, o ministro da Economia esnobou do relatório, que, disse, nem merecia ser lido. Seria interessante saber o que é que o FMI diria do PaF se cumprisse o seu programa eleitoral, o que obviamente nunca iria acontecer.

Com o PS este clamor quase diário de declarações e ameaças é para irem à jugular do Governo e acabar com ele. E, para acabar com ele, basta colocá-lo entre os controleiros de Bruxelas e as agências de rating, de um lado e do outro os seus aliados à esquerda que se colocaram imprudentemente atrás de várias linhas vermelhas que sabem muito bem que o Governo pode ter de atravessar. Sim, porque o PS entre a “Europa” e os seus aliados vai sempre escolher a “Europa”.

Por isso, a estratégia de Passos Coelho tem sentido do ponto pessoal e partidário. Não é por acaso que Passos Coelho alimenta a esperança de eleições a curto prazo, mesmo que, por conveniência, o disfarce — aliás, bastante mal. Passos conta com a superficialidade do discurso jornalístico para dizer numa entrevista que não quer eleições e os títulos tomarem-no a sério, quando tudo o que ele faz e diz só tem sentido para o curto prazo. E, no curto prazo, não é uma estratégia irrealista, bem pelo contrário. Passos tem tudo a seu favor a curto prazo e tudo contra a médio. E conta com a União Europeia para derrubar o Governo de Costa e com os múltiplos ecos da política do “ajustamento” que ainda ecoam alto e bom som por todo o lado.

O debate final do Orçamento e algumas declarações recentes de responsáveis do Bloco, do PCP e da CGTP já mostravam maior consciência do problema. Mas a chave está no PS. O PS sabe muito bem o que aí vem e que precisa de ter uma resposta política concertada face às exigências “europeias” e que estão longe de poder ser acomodadas por um qualquer pacífico plano B. O que lhe vai ser pedido pode ser apenas um “sinal”, como agora se diz, mas esse “sinal” será sempre de rendição — obrigar o Governo a fazer a política do “ajustamento”, e, mais do que isso, com os alvos habituais do “ajustamento”: trabalhadores, funcionários públicos, pensionistas, classe média.

É suposto haver uma seta do tempo. Ela explica por que razão só com um enorme esforço e energia se é capaz de fazer a pasta dos dentes regressar ao interior da bisnaga. Mas o que a situação actual revela é que há demasiados dedos a tapar a pasta para não sair, e a pasta precisa de muito mais força para os contornar. O tempo pode voltar para trás, porque ainda não andou decisivamente para a frente.

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