Nelson Évora fez uma ressonância magnética na Fundação Champalimaud. Nas imagens a preto e branco, não encontrámos a sua confiança nem medimos o tamanho e força que terá. Simplesmente, porque isso não é possível. Ainda.

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Rui Gaudêncio e Miguel Manso

E se a confiança estiver mesmo atrás dos nossos olhos?

Córtex pré-frontal, ou mais precisamente córtex orbitofrontal, é o nome de uma das regiões do cérebro onde muitos cientistas procuram os possíveis sinais da confiança. Fica mesmo atrás dos nossos olhos. Aparentemente, essa é uma das zonas onde será possível observar os disparos dos nossos neurónios quando estão envolvidos numa decisão que tomamos com confiança. Mas, seguramente, não será a única. As imagens da ressonância magnética de Nelson Évora mostram um bonito cérebro a preto e branco, mas, para já, não nos dão pistas sobre a sua confiança. Resta-nos confiar nas suas palavras. 

Zachary Mainen é coordenador de uma equipa de investigadores do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud. Antes da realização da ressonância magnética, Zachary explicou a Nelson Évora que seria impossível tirar alguma conclusão do exame.

Percebi, quando fui fazer a ressonância, que ainda se sabe muito pouca coisa. Foi mais uma forma de conseguir algo visual. Gostava que pudessem fazer um estudo mais profundo, mas isso envolve muitos exames, muitas experiências. Acredito que vai ser bastante complexo chegar a uma conclusão. A confiança estará em todos os sítios do nosso cérebro e em nenhum em concreto. As actividades vão ser repartidas pelas várias áreas do nosso cérebro e não vamos poder dizer ela está aqui ou acolá. Acho que ainda estamos na idade da pedra em relação ao que sabemos do nosso cérebro. Gastamos milhões a tentar conhecer algo fora do nosso planeta e mal nos conhecemos a nós próprios.

Nelson Évora tem razão. Para que se conseguisse ver alguma coisa, era preciso que o atleta olímpico fosse submetido a vários testes que colocassem a sua confiança à prova. No limite, poderíamos apontar a nossa atenção para algum alvo específico (uma região do cérebro) e ver umas áreas a ficar marcadas a vermelho. A cor indicaria a actividade cerebral e denunciaria se os neurónios estavam ou não a disparar com maior ou menor intensidade, mais ou menos velocidade. Mas a verdade é que não seríamos capazes de sequer perceber inteiramente o que estávamos a ver. É isso que nos diz Zachary Mainen, que olhou para o resultado do exame simples de Nelson Évora e concluiu que não é possível dizer nada sobre a sua confiança. Mas o atleta dá uma ajuda ao cientista.

Sem dúvida, sou uma pessoa bastante confiante. Acho que, quando estes estudos chegarem mais longe, será possível associar a confiança à minha pessoa.

Há vários anos que Zachary Mainen procura a “assinatura da confiança no cérebro” e os seus avanços têm sido notícia por cá e lá fora. Em 2008, poucos meses após se instalar em Portugal vindo dos EUA, Zachary comentava ao PÚBLICO os resultados de um trabalho com a equipa de investigadores do Cold Spring Harbour Laboratory (em Nova Iorque) e da qual fez parte que mereceu um artigo publicado na Nature. Era um estudo sobre cheiros, decisões e estimativas de confiança. Tudo em ratos. Já nessa altura a equipa tentava medir a actividade cerebral dos animais na “parte da frente do cérebro”. Na tal região que fica, mais ou menos, atrás dos nossos olhos. E é por ali que continua a procurar uma das “assinaturas” da confiança no nosso cérebro.

“É uma parte muito interessante do cérebro. É engraçado, porque é algo que se preservou com a evolução. Nós temos um córtex orbitofrontal mais expandido, maior e mais rápido. Será uma das explicações para a nossa maior capacidade mental. Mas de qualquer forma podemos encontrar grandes semelhanças desde os ratos até nós. Essa é uma das razões que explicam o nosso interesse nessa região. Além disso, parece ser uma região envolvida na previsão do futuro. Sobre qualquer coisa que vai acontecer, se é importante, boa ou má. Esta área é muito envolvida, por exemplo, quando jogamos na lotaria, ou estamos a jogar um jogo. E aqui joga-se a certeza. De ganhar ou não, para definir a aposta”, explica Zachary Mainen ao PÚBLICO. O investigador sublinha que, apesar de saber que é importante e de ter sido eleita como o seu alvo de estudo, esta não será seguramente a única região do cérebro onde vive a confiança. A investigação nos ratos continuou com Zachary como investigador principal do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud e mantendo a parceria com os investigadores no laboratório norte-americano.

No final de 2014, publicou um artigo na revista científica Neuron e, desta vez, mostrava como era possível detectar sinais do sentimento de confiança numa região específica do cérebro dos ratos. Qual? O córtex orbitofrontal – a revista Time fez depois um artigo sobre o estudo, a que chamou "Where confidence lives in the brain [Onde mora a confiança no cérebro]. Neste artigo científico mais recente, o investigador apresentava novos detalhes da experiência com os ratos. Observou de novo o tempo que os animais estavam dispostos a esperar por determinada recompensa, depois de terem escolhido um caminho baseado num “jogo” com cheiros. Confirmou que, “quando estavam confiantes” na escolha que tinham feito, os animais estavam dispostos a esperar mais tempo pela recompensa. Mediu a actividade cerebral. E percebeu ainda que, quando desactivava esta zona do córtex orbitofrontal nos ratos, isso afectava o comportamento dos animais, que ficavam confusos e que, apesar de escolherem o caminho certo, já não se mostravam tão determinados a esperar pela recompensa. O tempo de espera tornava-se aleatório, como se não tivessem bem a certeza da escolha feita. Como se tivessem perdido a confiança.

E agora? “Estamos a tentar traduzir isto para as pessoas”, diz Zachary Mainen. Para já, observam-se apenas as respostas e o comportamento sem recurso a qualquer técnica para medir a actividade cerebral. “Pusemos humanos no mesmo tipo de testes que fizemos com os ratos. Colocámos as pessoas perante uma situação em que tinham de tomar uma decisão, variámos a dificuldade dessa decisão. Perguntámos a estas pessoas se estavam dispostas a esperar para ter a recompensa que, neste caso, eram pontos num jogo no computador”, explica o investigador. E quais foram os resultados preliminares deste jogo que se faz num pequena sala da Fundação Champalimaud, com meia dúzia de computadores e divisórias no meio de cada um deles? “As pessoas fizeram coisas muito parecidas com os ratos. O que não nos surpreendeu, porque era o correcto a fazer. Mas o que estávamos a tentar era ver se conseguíamos brincar com a sua confiança. Dizer-lhes que estavam certos quando estavam errados e vice-versa. Ver como isso mudava o seu comportamento, a decisão”, conta. E conseguiram? “Quando olhámos para o tempo de espera, sim, altera-se. Mas também lhes pedimos para classificar a sua confiança (de 1 a 10). E isso não mudou.”

A experiência assenta num jogo de letras que aparecem num computador, seguido de algumas perguntas sobre o que se acabou de passar. Depois, faz-se também a já referida pergunta: De 1 a 10 qual a sua confiança/certeza na resposta?

Nelson, se lhe pedisse para avaliar de 1 a 10 a sua confiança antes de um salto…
Seria 10. Tem de ser 10.
E nesta função de dirigir um jornal?
(risos) É um cinco.

A confiança não é uma função. Como ver, ouvir… ou saltar. É um sentimento vulnerável a muitas coisas e envolve outras tantas. Já para não falar no que quer dizer a palavra. Pode ser a confiança numa decisão, numa pessoa. Em inglês há até duas palavras diferentes para algo muito semelhante: confidence e trust. Pode existir (ou não) numa decisão individual ou tratar-se de um traço de personalidade.

Tal como explica Zachary, uma coisa é falar sobre a confiança a nível individual, numa decisão específica, outra será falar num traço de personalidade. Para já, o investigador concentra-se na “microconfiança”, um termo inventado por si. “O que estamos a estudar no laboratório são as decisões mais pequenas, as microdecisões, e já sabemos alguma coisa sobre isto. Sabemos menos sobre o traço de personalidade da confiança. Mas começamos a achar que provavelmente estão relacionadas. Nos últimos anos tentámos explorar essa possível relação entre as duas”, diz. Às vezes a confiança também é traduzida como certeza.

Mas essa relação existe no cérebro? Há um território comum, uma mesma região onde há sinais da actividade cerebral para uma “microdecisão” ou um traço de personalidade? “É uma questão importante. Pensamos que a decisão e a confiança acontecem em quase todas as partes do cérebro, em certo sentido. Nos sentidos, na visão, outras experiências sensoriais, na parte do cérebro que está envolvida nas acções. Todas as regiões do cérebro têm uma razão, um motivo para se preocupar com a certeza ou a incerteza.”

Um dos próximos passos da investigação da equipa de neurociências da Fundação Champalimaud passa precisamente por explorar esta possível relação entre a confiança numa decisão e o traço de personalidade. Os eventuais pontos comuns entre estar e ser confiante. “Estamos a tentar perceber se conseguimos identificar qualquer coisa geral, comum para diferentes tarefas. Podemos pensar que a opção por esperar é um sinal, ou falar em público outro sinal. São diferentes maneiras de expressar a confiança. Podemos alterar um destes comportamentos sem afectar os outros? Estamos a tentar testar isso pondo as pessoas a desempenhar várias tarefas e ver o que acontece. Ver o que se passa quando falamos em público e, de repente, perdemos a confiança ou se somos um atleta e estamos prestes a saltar e perdemos a confiança. Achamos que a perda de confiança pode ser algo global, geral, e que afecta todas as tarefas que nos foram pedidas naquele momento. Achamos que pode haver uma raiz comum”, adianta Zachary Mainen.

Por exemplo, neste momento[como director de um jornal]estou numa área que não é minha e não me sinto nada confiante. Mas a minha perseverança é sempre a mesma. Estou a tentar dar o melhor. Mas mesmo quando salto há formas de mexer com a minha confiança. Às vezes pedimos palmas para aumentar a nossa confiança, para sentirmos uma interacção com o público, e, quando o público não reage da melhor forma, isso pode-nos afectar. Ou então, sentimos que temos de fazer algo de espectacular para conquistar a confiança do público.

Segundo Zachary, no campo comportamental, há estudos que demonstram que o cérebro parece até saber em que sentido confiar quando existem informações que parecem contraditórias. “Por exemplo, se queremos saber o que se passa à nossa frente para dar um simples passo e está muito nevoeiro? O nosso cérebro vai recorrer a outros sentidos como a audição para nos dar (ou não) a confiança para tomar essa decisão. E isso também envolve memória vs experiência.”

A confiança será, então, o resultado de uma combinação de vários acontecimentos neurológicos. “Qualquer pedaço de actividade no cérebro que está relacionada com um processo de memória, acção, ou outras coisas pode também ter presente a confiança nessa informação. Uma fraca actividade pode querer dizer menos certeza e maior actividade mais certeza. Assim, a natureza da acção será onde está no cérebro e a confiança/certeza sobre ela será sobre quantos neurónios estão a disparar, por exemplo. Ou a que velocidade estão a disparar. Achamos que é um código que é importante para todos os aspectos da função cerebral.” É difícil isolar a confiança. Ou, como diz Zachary Mainen, encontrar a sua assinatura. Nelson Évora fez questão de se preparar para a tarefa de dirigir o jornal. Confirma que fez os trabalhos de casa e pesquisou alguns assuntos. O cérebro foi um deles.

Estar dentro do cérebro é muito complexo. Lembro-me, quando era mais novo, de ter visto um documentário ou uma notícia de um rapaz que sofreu um acidente com uma bala perdida e teve de remover metade do seu cérebro. Fizeram umas próteses e ele ficou com uma aparência normal. De resto, perdeu alguns movimentos e algum tipo de memória, mas os cientistas achavam que ele devia ter perdido muito mais. O cérebro reorganizou-se de alguma forma. Tinha pequenas falhas, mas aparentemente estava tudo normal. Os cientistas ainda sabem muito pouco sobre o que se passa dentro das nossas cabeças.

Zachary Mainen é um dos muitos investigadores que querem saber mais. Apesar dos avanços nas técnicas de imagens que nos permitem hoje espreitar para dentro dos nossos cérebros e decifrar coisas absolutamente incríveis, falta aprender muito. No laboratório, em animais, observámos neurónios individuais, células individuais. Quando olhamos para uma ressonância magnética, olhamos para milhões de células ao mesmo tempo. Surpreendentemente, já é o suficiente para retirar informações fantásticas. Somos, por exemplo, capazes de dizer, olhando imagens e analisando dados, em que é que alguém está a pensar. Um objecto. Isso já é possível. Somos constantemente surpreendidos com o que se consegue fazer com estas técnicas. Embora a informação seja ainda muito crua, os métodos de análise são hoje muito sofisticados e rápidos”, constata.

Isso quer dizer que um dia seremos capazes de dizer de forma definitiva onde mora a confiança no cérebro? Seremos capazes de um dia olhar para um cérebro e dizer: "Esta pessoa é confiante"? “É possível. Não é impossível. Não conseguimos fazer isso agora. Provavelmente, não será nada tão simples como algo que se possa ver pelo tamanho de uma região, mas, repito, é impressionante o que conseguimos ver. Principalmente, quando sabemos de que é que estamos à procura e quando concebemos um estudo de forma adequada”, arrisca Zachary. E remata: “Não posso fazer esse anúncio neste momento, mas provavelmente vai acontecer. O cérebro é um mar gigantesco.” Ou um universo, diz Nelson Évora.

Todos os dias perdemos e ganhamos confiança. Faz parte da nossa vida. Até em coisas simples. Como o carro, por exemplo. Confiamos, ele nunca falhou, e há um dia em que começamos a perder a confiança nele. É algo a que nos vamos readaptando. Seja algo simples como um carro, seja uma pessoa importante na nossa vida. Como alguém com quem nos casámos e um dia tudo cai. Faz parte dessa readaptação. É como o miúdo que levou com uma bala perdida no cérebro. Readaptou-se. Ele teve a força e a vontade para continuar. Nós somos esse animal teimoso e muito misterioso. Cada um de nós é um universo.

Por todo o mundo, teimosamente, os investigadores tentam desvendar mais um ou outro pequeno mistério do cérebro. Quando perguntamos porque optou por se dedicar à confiança e não ao amor, à felicidade ou a outro sentimento qualquer, Zachary sorri. Diz que a ciência tem muito disso, confiança. “Acontece muitas vezes como resultado de uma escolha baseada na certeza, na confiança.” E, por vezes, essas decisões são tomadas sem determinantes dados estatísticos.

Nos estudos que associam a confiança e o cérebro há outra frente que tem tido muita visibilidade. Apesar de não procurar uma morada concreta, explora as formas de conseguir chegar até à confiança. É o caminho da química da confiança. Vários estudos publicados nas mais reputadas revistas científicas revelam que a oxitocina (conhecida pela "hormona do amor", nos meios menos científicos) pode influenciar a nossa capacidade de estarmos, ou sermos, mais ou menos confiantes. A oxitocina, que a maioria das pessoas associa ao momento de um parto, pois ajuda a estimular as contracções, é produzida no cérebro e, segundo várias pesquisas, desencadeia outros efeitos interessantes. É o que dizem experiências tão simples (ou complexas) como, por exemplo, vaporizar alguém com um composto com oxitocina. Aparentemente, isso fará aumentar a capacidade de essa pessoa confiar noutra. Aliás, no limite, será mesmo capaz de nos fazer apaixonar por alguém, dizem alguns investigadores mais entusiasmados.

A confiança inicialmente está em nós, mas temos de a depositar em algum sítio, senão ela não tem nenhum valor. E, quando depositamos essa confiança, esperamos que seja retribuída de uma forma positiva. Quando não é retribuída, temos de reestruturar tudo outra vez. É um jogo de interacção com os outros, com o mundo exterior.

Zachary Mainen não parece muito interessado nesta frente química da confiança, nem na hormona do amor. Porém, se falarmos no célebre neurotransmissor da serotonina (associado à sensação de bem-estar), já é outra história. Há pouco mais de um ano, o investigador assinou um artigo com outros colegas da Fundação Champalimaud no qual demonstrava que o aumento de serotonina no cérebro torna os ratinhos mais pacientes, como noticiou o PÚBLICO. Quanto mais serotonina um ratinho tiver no cérebro, maior o tempo que consegue esperar pacientemente por uma recompensa, concluíam os neurocientistas Madalena Fonseca, Masayoshi Murakami e Zachary Mainen no artigo publicado na revista Current Biology. É mais uma conclusão que se retira do jogo com os ratos, os tempos de espera e as recompensas. Desta vez, o trabalho centrou-se na relação de uma das principais substâncias químicas envolvidas na transmissão da informação no cérebro com o adiamento de uma decisão. Estabeleceu-se uma ligação entre a serotonina e a paciência. Algo que, admite, pode também vir a ser associado à confiança.

Certeza, segurança, firmeza são alguns dos sinónimos de confiança. Há mais um que o cientista António Damásio, um dos mais conhecidos investigadores do cérebro e divulgadores de ciência, junta a esta lista: intuição. “A confiança é um assunto problemático. É, na verdade, um sentimento que acompanha a consideração de uma ideia, ou de um facto, ou de uma decisão. Tecnicamente, devia resultar de uma análise da informação a favor ou contra essa ideia, facto ou decisão, mas na maior parte das vezes, mais do que uma análise cuidada, o que realmente se passa é que existe um sentimento, mais ou menos forte, a favor ou contra. É nesse sentido comparável à intuição”, defende António Damásio numa breve resposta enviada por email ao PÚBLICO, que o questionou sobre este tema.

Ainda é cedo para indicar a morada da confiança no nosso cérebro. O que temos de mais imediato e seguro para avaliar a confiança de alguém é mesmo a observação do seu comportamento, dos seus gestos, da sua voz, da hesitação, dos tiques que a denunciam. Nelson Évora admite que, muito provavelmente, quando hesita e a confiança falha, faz como muitas outras pessoas e coça a cabeça. Quando conversou com o PÚBLICO, não o fez uma única vez. E, na ausência de respostas mais definitivas da ciência, o que nos serve hoje para percebermos se aquela pessoa é ou não confiante, está ou não confiante é o que vemos, ou seja, o que está mesmo à frente, e não atrás, dos nossos olhos.

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