Um Ivanov deprimido, um Irão de sofá

Deambulando entre o sofá e cama, este Ivanov de auscultadores a pesar sobre os ombros carrega consigo o desânimo de uma geração com o futuro espezinhado. No Porto e em Lisboa, Amir Reza Koohestani faz do texto de Tchékhov uma reflexão sobre o Irão contemporâneo.

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Na falência de Ivanov, o encenador vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime Mani Lotfizadeh
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Na falência de Ivanov, o encenador vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime Abbas Kowsari
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Na falência de Ivanov, o encenador vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime Abbas Kowsari
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Na falência de Ivanov, o encenador vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime Mani Lotfizadeh
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Na falência de Ivanov, o encenador vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime Mani Lotfizadeh

“Onde está o meu voto?” Foi esta pergunta que três milhões de iranianos empunharam ou bradaram em 2009, em Teerão, no auge do Movimento Verde, questionando a legitimidade da vitória de Mahmoud Ahmadinejad nas eleições presidenciais com 62,6% dos votos. Devolvido ao centro do turbilhão político, o ex-primeiro ministro Mir Hossein Mousavi tinha conseguido cativar o eleitorado estudantil, progressista e o crescente grito de emancipação feminina, agregando o entusiasmo das vozes que se opunham à manutenção de Ahmadinejad no poder. Mousavi foi um receptáculo de esperança e, quando foi rápida e oficialmente anunciado como derrotado, seguiram-se meses de protestos civis que alegavam fraude eleitoral – tão inesperados que seriam reprimidos com uma repetida violência policial e militar, responsável pela morte de mais de uma centena de protestantes. Num braço-de-ferro com o regime de Ahmadinejad, e após algum enfraquecimento do Movimento Verde, Mousavi usaria a Primavera Árabe como tirocínio para uma nova fortíssima contestação popular em Fevereiro de 2011. A paga por tal afronta chegaria na forma da prisão domiciliária que lhe foi decretada, para que os ânimos serenassem e a situação voltasse a estar controlada.

Foi com este cenário em fundo que o encenador iraniano Amir Reza Koohestani preparou e estreou, em Outubro de 2011, a sua adaptação de Ivanov, uma das primeiras peças de Anton Tchékhov. “A razão pela qual escolhi o Tchékhov não é muito clara para mim”, confessa Koohestani. “Lembro-me apenas que tinha visto a peça há muito tempo, na Volksbühne, em Berlim, na versão do Dimiter Gotscheff. Embora não compreenda alemão, fiquei interessado naquela personagem muito solitária, cercada por várias pessoas, todas pretendendo alguma coisa dele.” A mulher que o quer prender ao casamento, a amante que o quer resgatar para outra vida, o amigo que tenta sacar-lhe dinheiro para os seus próprios investimentos, o pai da amante que reclama o pagamento de uma dívida. A tudo, na versão de Koohestani, Ivanov parece indiferente, arrastando-se num modo quase sedado, como se tivesse perdido a esperança numa vida melhor, como se tivesse sido derrotado, suprimido.

Daí o pano de fundo do Movimento Verde. Nesta falência de Ivanov, Koohestani vê o desânimo que se abateu sobre os intelectuais do Irão, a desistência de acalentar a esperança e procurar uma resistência ao regime. Mas a sua escolha por trabalhar a partir da tradução inglesa de David Hare – que preferiu a uma tradução persa por o texto vertido por Hare resultar mais próximo da sua linguagem teatral – dever-se-ia também a uma questão prática. Após a estreia, em 2009, da sua anterior peça, Where Were You on January 8th?, criação original de Koohestani (para o seu Mehr Theatre Group) em que quatro mulheres se juntam para ensaiar As Criadas, de Genet, e em que a comunicação telefónica com o exterior evoca a necessidade de os jovens iranianos se fazerem ouvir, o encenador e dramaturgo foi avisado de que o texto, embora autorizado, lhe criara sérios problemas junto do Comité de Censura. “Percebi então que toda a gente estava muito susceptível com a nossa companhia e com o meu trabalho, pelo que pensei que me podia esconder atrás do Tchékhov para sobreviver artisticamente”, relata. Não resultou. “Acabou por não ser uma opção muito segura.”

Enquanto preparava Ivanov, Koohestani foi visitado pelos censores que, de imediato, impuseram o adiamento da estreia e exigiram alterações na sua reescrita da peça do dramaturgo russo. Seguiu-se uma negociação e uma discussão de vários momentos do texto, tão longas que, aos poucos, o encenador se convenceu de que “queriam encontrar alguns problemas e era simplesmente disso que estavam à procura”. As suas alternativas às ordens para que cortasse ou alterasse alguns excertos pareciam nunca apaziguar a sanha censória e Koohestani classifica todo o processo como “uma caça às cegas”, não sabendo exactamente aquilo que desagradava, mas apenas que as ideias que apresentava não eram aceites. Não era tanto a peça que era alvo de censura, mas o seu próprio trabalho.

“Eu alterava, eles voltavam e diziam-me que tinha ficado ainda pior”, recorda. “Por exemplo, havia uma cena no I Acto em que as personagens se deitavam na cama de Ivanov e começavam a embebedar-se. Disseram-me que não podia pô-los a beber na cama de Ivanov. Então troquei por uma cena em que estão sentados na cama dele a fazer kebabs e limpam as mãos aos lençóis – uma situação muito estranha. Eles viram e acharam ainda mais reprovável. Mas a mim agradava-me, era muito poderoso e mais interessante porque deixava de ser realista. Depois, conseguimos convencê-los a manter essa cena.” Mas o convencimento não foi apenas efeito da sua serpenteante oratória. Enquanto se mantinham as negociações e Koohestani reescrevia outra e mais outra versão do texto, fazia também uso das suas ligações ao cinema (é também guionista) instigando um lobby junto da Censura para conduzir à aprovação da peça. Após a estreia, todos os dias encenador e actor iam repondo pequenas partes que haviam sido cortadas. “Penso que nos últimos cinco ou seis espectáculos em Teerão, a versão que apresentámos era a versão que gostaríamos de mostrar”, diz. Para o estrangeiro, a peça que veremos sexta-feira no Teatro do Campo Alegre (Porto) e no D. Maria II (Lisboa) de 10 a 12 de Março, foi ligeiramente encurtada.

O horizonte nos auscultadores
Além do historial de Koohestani, o ambiente pós-Movimento Verde ajudou a que os problemas com as autoridades se intensificassem. Mas foi a ressaca dessa manifestação popular a lançar Ivanov num estado quase catatónico e em retirada do mundo. O encenador acredita mesmo que “um médico não terá dificuldade em identificar uma série de referências e sintomas de depressão” neste Ivanov pedido de empréstimo ao tédio da Rússia czarista e que, sempre de auscultadores a descansar sobre os ombros, se arrasta entre sofás e camas, cansado da vida. Koohestani recusa-se a dar a Ivanov uma saída fácil – se na primeira versão de Tchékhov, depois da morte de Anna, sua mulher, Ivanov era protegido pela amante Sasha que pedia que deixassem o seu marido em paz antes de este sucumbir (de vergonha ou de ataque cardíaco, cada um que escolha), na segunda versão o dramaturgo russo empurrou a personagem para o suicídio. “Quando li o texto percebi que o meu Ivanov não podia suicidar-se porque isso exigiria coragem”, comenta. “Isso seria fazer algo; o suicídio seria um final feliz, no sentido em que alcançaria finalmente um alívio da dor. E não quis isso. Achei que o final pior para Ivanov seria viver e sofrer as consequências do que causou.”

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Abbas Kowsari

Quando se arrasta pelo palco, aliás, dir-se-ia que Ivanov carrega o peso da culpa – de se recusar a mudar para uma casa à beira-mar, o que permitiria à mulher uns últimos meses de vida menos penosos; de viver num triângulo amoroso em que passa o tempo com uma a desejar estar com a outra; de não ser capaz de abandonar o amor da mulher e assumir a vida que gostaria de ter; de não estar à altura do sacrifício da conversão religiosa que a mulher fez para se casarem. Mais uma vez, Koohestani está noutro plano, e compara a frustração dupla de um homem entalado entre duas mulheres à emigração – “os emigrantes vivem também duas vidas diferentes; podem estar na Europa, mas estão também na sua cidade natal; nunca conseguem integrar-se nesse sítio novo, não gozam esse país, tal como não estavam felizes onde viviam, nunca têm esse conforto”.

De cada vez que Ivanov olha para si, apenas vê apatia e a vida a passar-lhe ao lado com desprezo pela sua inacção e a deixá-lo cada vez mais soterrado na passividade. Koohestani não só condena Ivanov à vida, como permite que Sasha se livre do homem por quem desesperou à espera de casar. A imagem, mais uma vez, é a do Irão contemporâneo, do “papel das jovens mulheres nas ruas no período pós-eleições”, a reclamar o controlo sobre as suas vidas.

Esse período que o encenador diz ter sido marcado por uma “crise com muito desespero e muita infelicidade causados pelos resultados eleitorais” impregnou toda uma geração de “amigos no campo artístico, em que toda a gente dizia que não se podia fazer nada, que se tinha tentado mudar o governo, mas acabáramos em manifestações suprimidas pelo governo”. Daí que Koohestani afirme “Todos nos tornámos Ivanov”. Ivanov não são os outros, é um fantasma colectivo da incapacidade, da derrota e da desesperança em qualquer lugar do mundo. Para deleite do encenador, Tchékhov apresenta-nos um homem que “terá sido extremamente optimista, muito prestimoso para com a família e os amigos”, e sem sabermos como a figura vemos no palco é sempre uma sombra, um corpo cavado por dentro, uma lembrança constante de um futuro desfeito com crueldade.

Esse efeito colectivo insinua-se também através dos auscultadores que Ivanov que usa para escutar lições de inglês. Este Ivanov esteve quase para ser um DJ ou um músico, mas o encenador viu nos auscultadores uma cajadada para matar dois coelhos: ao mesmo tempo que mesclava a depressão da personagem com uma misantropia e uma crescente dormência em relação ao exterior, o inglês surge desde o início como possibilidade de fuga, de sonho com uma terra distante e com uma emigração que Ivanov nunca agarra mas é sempre brandida à sua frente. A mudança está sempre num horizonte. Mas num horizonte míope. Nunca nada realmente muda. E se nos ouvidos Ivanov escuta um inglês longínquo, os olhos nunca vão além das paredes de casa e as pernas tremem-lhe para lá do sofá.

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