"Selva" de Calais transforma-se em arma de arremesso político

França ameaça abrir a porta às centenas de migrantes que querem chegar ao Reino Unido caso o reino opte por sair da União Europeia. Demolições entram no terceiro dia.

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Dois migrantes diante habitações improvisadas em chamas na zona Sul do campo, nesta quinta-feira. Yves Herman/Reuters

Os moradores da cidade de tendas e barracas a que se chama “Selva de Calais” aperceberam-se nos últimos dias de que há pouco a fazer contra os buldózeres franceses e equipas de polícia anti-choque que destroem as casas ilegais do maior bidonville em França desde segunda-feira. “Não há solução, não há nada a esperar”, resumiu Amer, “O Sudanês”, um dos líderes comunitários de Calais que organizações humanitárias ouviram na esperança de conseguirem alinhar um plano de resistência contra o processo de demolição da zona Sul do campo improvisado, que esta quinta-feira decorria pelo quarto dia consecutivo.

Calais estima haver cerca de mil moradores na zona de tendas que será demolida no curso das próximas semanas. Duas organizações humanitárias no local reclamam existirem perto de 3500 pessoas. Quase 500 são crianças e, destas, 305 não têm acompanhantes, asseguram. No primeiro dia de demolições, dezenas de moradores fizeram frente à polícia, incendiaram tendas e atiraram pedras contra camiões a caminho do Reino Unido, para onde todos em Calais querem ir, mas são impedidos. Acabaram dispersados por balas de borracha, canhões de água e gás lacrimogéneo. Um homem morreu de ataque cardíaco na noite de terça-feira enquanto a polícia demolia habitações.

O município de Calais argumenta que demolir esta parte do acampamento de Calais é a alternativa mais humana e a única maneira de garantir condições de vida aceitáveis para as centenas de pessoas que lá moram. Polícia e responsáveis franceses insistem em dizer que as pessoas se podem mudar para a nova zona de contentores de habitação construídos pelo Estado, que, ao contrário das tendas e barracas, têm aquecimento. Mas, para o fazerem, os migrantes têm de se registar, o que para muitos é uma jogada de alto-risco: parte teme acabar deportada pelo Governo francês, ou obrigada a pedir estatuto de refugiado, quando o que os fez viajar até Calais foi a perspectiva de viver no Reino Unido, mesmo que de forma ilegal, por conhecerem a língua e esperarem acesso a mais prosperidade.

O Governo britânico, por sua vez, faz o máximo para não aceitar as cerca de cinco mil pessoas da “Selva” de Calais — há mais cerca de dois mil moradores na zona norte do campo. Em Agosto do último ano anunciou um pacote de 35 milhões de euros para reforçar a segurança no Canal da Mancha, com câmaras de vigilância, vedações e um comando policial conjunto com as autoridades francesas. Hoje usa a imagem de milhares de migrantes do Médio Oriente e África em terreno britânico como campanha pelo voto de permanência na União Europeia.

O primeiro-ministro britânico deu o primeiro alerta no início de Fevereiro, quando disse que os acordos bilaterais de fronteira com a França poderiam ruir caso o Reino Unido optasse por abandonar a união. “Se isso for posto em causa e esses controlos [fronteiriços] deixarem de existir, então podemos ter aqui potencialmente milhares de requerentes de asilo acampados no Norte da França quase de um dia para o outro”, disse. Defensores do “Brexit” acusaram Cameron de querer “amedrontar” os britânicos, mas o primeiro-ministro conseguiu esta quinta-feira que o Governo francês lhe validasse os argumentos.

“Haverá consequências”, limitou-se a dizer François Hollande aos jornalistas, questionado sobre as ameaças do seu ministro da Economia, publicadas esta quinta-feira no Financial Times: “No dia em que esta relação se desfizer, os migrantes deixarão de estar em Calais”, afirmou Emmanuel Macron, falando de um Reino Unido fora da comunidade europeia. Esta quinta-feira, com Hollande a seu lado, Cameron anunciou mais 17 milhões de libras para ajudar a polícia francesa na vigilância do Canal da Mancha, por onde os migrantes de Calais tentam chegar ao Reino Unido, e recusou a ideia de estar a fazer bluff em pareceria com os franceses, receosos também da saída do Reino Unido da comunidade. “A ideia de uma conspiração é um disparate absoluto.”

Sobre a “Selva de Calais”, onde, à hora da conferência de imprensa, famílias transportavam tendas e barracas para longe dos buldózeres e vários iranianos costuraram os lábios em protesto contra as demolições, Hollande disse que as pessoas deveriam ser “tratadas com dignidade” e que as crianças sem acompanhantes mas com familiares no Reino Unido devem poder viajar para lá.

A organização britânica Care4Calais acusa as autoridades francesas de “brutalidade” e “intimidação” e afirma que não há lugar suficiente nas habitações em contentores para todos os moradores despejados nas demolições. “As autoridades francesas estão determinadas a encerrar a 'Selva' o mais rápido possível, qualquer que seja o custo humano. É esperada uma nova onda de refugiados para Calais em Abril ou Maio. Esta é a última oportunidade de se livrarem de um gigante inconveniente político antes que se torne ainda maior”, escreve no Guardian Clare Moseley, voluntária da organização.  

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