Entre Caetano e os Pavement, eis Cícero

Numa mini-digressão portuguesa de quatro datas que se inicia esta quarta-feira em Lisboa, o cantautor brasileiro Cícero apresenta A Praia, disco de um samba contemporâneo.

Foto
DR

Acabado de regressar do exílio inglês, Caetano Veloso gravou, em 1972, aquele que é ainda hoje considerado o objecto mais estranho da sua discografia. Trancado no estúdio, Caetano fez de Araçá Azul um pequeno palco de experimentação que, de tão inesperado e mal recebido pelo público, se tornou o recordista da Música Popular Brasileira em matéria de devoluções (muitos compradores levaram o disco para casa e voltaram a devolvê-lo à loja). Com o tempo, tornou-se um clássico.

Pode ser que o mesmo venha a acontecer com Sábado (2013), o segundo álbum de Cícero. Após o aclamado disco de estreia a solo, Canções de Apartamento, o cantautor carioca replicou esse movimento de Caetano. “O Caetano trancou-se num estúdio sozinho, ficou experimentando coisas e lançou um disco que ficou taxado de experimental”, compara Cícero em conversa com o PÚBLICO, admitindo a inspiração em Araçá Azul. “Com Sábado foi a mesma coisa – era eu com os equipamentos, experimentando em casa, gravando o disco com iPhone e gravador de cassetes. Ganhou também essa alcunha de experimental.” A consequência foi o esfriamento da sua relação com o público que se apaixonara por Canções de Apartamento.

O site obrigatório Miojo Indie escreveu que Sábado era um misto de “expectativa e frustração”. E Cícero, para quem uma obra se faz "no diálogo entre o artista e o público, senão vira uma terapia”, sente que ficou a falar sozinho. Ele que avançara para o segundo álbum preferindo que “os discos tivessem personalidades distintas entre si, para que com o tempo não ficasse uma discografia previsível ou monótona”, acabou por perceber que, sendo um álbum de reclusão e de autoconhecimento, gravado a quente e em cima de cada ideia, “Sábado era”, afinal, “o rascunho de Sábado”.

Junto do seu público espalhou-se então a ideia de que o músico traíra aquela desusada e cativante aura romântica de Canções de Apartamento. Cícero não parecia o mesmo. Mas esse sentimento de orfandade esbateu-se com a edição recente de A Praia (2015), que apresenta agora ao vivo em Lisboa (dia 2, Estúdio Time Out), Ovar (dia 3, Escola de Artes e Ofícios), Braga (dia 4, Theatro Circo) e Castelo Branco (dia 5, Cine Teatro Avenida).

Da infância à adolescência

A Praia soa a Cícero a apontar para o meio. Um pouco de Canções de Apartamento, uma dose de Sábado, e sai um álbum que volta a encetar conversa com o público. “A intenção foi mesmo a de fazer um disco que amarrasse os outros dois, que desse uma ideia não de trilogia mas de três pontos que estabilizam uma linguagem”, justifica. “A Praia dialoga com os dois discos em igualdade de condições e talvez os explique um pouco melhor.” Cada álbum, diz Cícero, foi feito olhando para o(s) outro(s): Sábado foi composto olhando para Canções de Apartamento, A Praia foi gerado olhando para Sábado e Canções.

Essa praia de “facção” – “uma mistura de facto com ficção”, explica – responde mais a uma ideia poética do que real. É uma praia que existe na cabeça de Cícero, “um estado de espírito” que se pode encaixar em qualquer praia deste mundo. A Praia é um disco “ainda muito carioca”, composto no Rio de Janeiro, mas gravado já depois de Cícero se ter mudado para São Paulo. As canções nascidas no Rio, defende, tendem a ser “mais lentas, sinuosas e curvilíneas, [favorecendo] o mar, o morro e a humidade do ar”, defende, contrapondo as canções paulistas como “mais duras, um pouco mais agressivas e contundentes, mais a favor de enfrentar e exaltar a cidade”.

Essas diferenças só se notarão na música de Cícero no disco que vier depois de A Praia, quando levar a cabo mais uma pirueta estilística. Ainda que a matriz para as suas criações pareça estar perfeitamente delimitada no encontro entre a MPB dos anos 60 e 70 e o pop/rock alternativo das décadas de 90 e 00. A MPB de Caetano, Gilberto Gil e Gal Costa, que cresceu a ouvir por influência dos pais, formatou-o “na forma de entender ritmo, melodia e estrutura de música”. “Os meus pais eram da geração pós-hippie, cresci ouvindo muito tropicalismo, muito britrock como Beatles e Stones”, lembra. “Isso por conta da minha família. Quando chegou a minha vez de decidir, na adolescência, fui para o rock alternativo, ouvi Pixies, Sonic Youth, Pavement e Radiohead, mas já com essa carga muito forte de memória de criação de música brasileira.”

São esses dois mundos em contacto que chispam constantemente nas suas canções de um samba contemporâneo: a acidez do rock anglófono em choque com a ginga doce e melosa da melhor MPB. Eis Cícero.

Sugerir correcção
Comentar