ACNUR avisa: Europa à beira de crise humanitária "auto-induzida"

Cerca de 24 mil refugiados estão bloqueados na Grécia e o país prevê que em breve serão cem mil. Desde o início do ano chegaram à Europa quase tantas pessoas como nos primeiros seis meses de 2015.

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Cerca de 8500 refugiados estão concentrados junto à fronteira com a Macedónia. O ACNUR diz que 1500 passaram a última noite ao relento Sakis Mitrolidis/AFP

A Grécia arrisca-se a ser palco de uma crise humanitária provocada, em grande parte, pela falta de solidariedade europeia e pela incapacidade dos Estados-membros da União Europeia (UE) para aplicarem decisões já acordadas. A denúncia é feita pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), numa altura em que 24 mil pessoas em trânsito para o Norte da Europa estão bloqueadas no país e Atenas admite que o número pode chegar em breve aos cem mil.

A agência da ONU revelou nesta terça-feira que, desde o dia 1 de Janeiro, 131.724 pessoas atravessaram o Mediterrâneo, quase tantas como em todo o primeiro semestre de 2015. Destas, mais de 122 mil chegaram às ilhas gregas do Egeu, um número muito abaixo dos registados durante o Outono passado, no pico da crise, mas que por força do estrangulamento nas fronteiras dos Balcãs está a criar uma situação sem precedentes na Grécia.

“Não estamos em condições de enfrentar a totalidade de refugiados que estão a chegar”, admitiu a porta-voz do Governo de Alexis Tsipras, ao anunciar que Atenas enviou a Bruxelas um pedido de ajuda “urgente” que tem por base a previsão de que, em breve, terá de alojar e alimentar cem mil pessoas – acima das 70 mil vagas disponíveis nas instalações existentes no país. Ao todo, adiantou a responsável, a Grécia precisa de 480 milhões de euros. A reposta da Comissão Europeia pode chegar já nesta quarta-feira, na forma de um plano de assistência financeiro, semelhante aos que Bruxelas costuma aprovar para crises humanitárias noutros pontos do globo, que terá como principal destinatário o Governo grego.

Lama e desespero
Idomeni, na fronteira com a Macedónia, está na linha da frente da crise. O campo montado junto à localidade tinha capacidade para duas mil pessoas, neste momento o ACNUR diz que são já mais de 8500 os que esperam uma oportunidade para passar para o país vizinho – Skopje abre os portões da vedação uma ou duas vezes por dia, autorizando, de cada vez, a passagem a escassas centenas de pessoas, apenas sírios e iraquianos com documentos válidos.

Centenas de frágeis tendas de campismo erguem-se nos terrenos enlameados em redor do campo principal e as autoridades gregas montaram dois novos centros de acolhimento temporário nos arredores de Idomeni, com capacidade para 12.500 pessoas. Mas o ACNUR adianta que só na última noite 1500 pessoas dormiram ao relento.

Foi o caso de Zahraa Alshibly, uma iraquiana de 16 anos que viaja com a mãe, uma irmã e os sobrinhos com o objectivo de se juntarem ao irmão, a estudar na Suécia, e que desde segunda-feira não ousa afastar-se da vedação. “Ao acordar descobrimos que a fronteira esteve aberta durante a madrugada. Estávamos a dormir e não soubemos de nada”, lamenta-se a jovem, ouvida pelo um jornalista da AFP, no meio de um grupo de 200 pessoas que prefere não comer a perder a próxima oportunidade de seguir caminho.

“A Europa está à beira de uma crise humanitária que é largamente auto-induzida”, avisou o porta-voz da agência da ONU, Adrian Edwards, apontando baterias às restrições fronteiriças (da Áustria à Macedónia os países da rota dos Balcãs impuseram quotas diárias para entrada diária de refugiados) e à incapacidade da UE para pôr em marcha o plano de redistribuição acordado em 2015 – das 160 mil pessoas que deveriam ter sido levadas de Grécia e Itália para outros países da UE, apenas 325 pessoas foram até agora realojadas. Estas “práticas inconsistentes estão a provocar um sofrimento desnecessário e arriscam-se a ser contraditórias com os padrões definidos pela lei europeia e internacional”, avisou o responsável.

Sobre a situação na Grécia, o ACNUR diz que a acumulação de gente num país que era até agora apenas de trânsito “está a provocar escassez de comida, abrigos, água e instalações sanitárias”. E, como provam os confrontos da véspera em Idomeni entre a polícia macedónia e um grupo de 300 refugiados que furaram a vedação, “a tensão está a aumentar, alimentando a violência e jogando a favor dos contrabandistas.”

Em Berlim, a chanceler alemã Angela Merkel, cada vez mais isolada na posição de não fechar as portas a quem foge da guerra, disse que o incidente prova a urgência de um acordo na cimeira da próxima segunda-feira, última tentativa para salvar do iminente colapso o espaço de livre circulação de Schengen, primeira vítima desta crise. Mas num momento em que a imigração é o assunto escaldante em grande parte da Europa, a troca de acusações sobrepõem-se à necessidade de consenso, como mostra o diálogo cada vez mais azedo entre a Alemanha e a Áustria. O chanceler austríaco, Werner Faymann, acusou Berlim de hipocrisia e insistiu que o país não aceita transformar-se na “sala de espera” da Alemanha, que apesar de recusar impor um tecto à entrada de refugiados mantém os controlos reforçados na fronteira.

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