Quando o exercício da democracia pode ser crime

Entre 2007 e 2013, 89 pessoas foram condenadas por "perturbação de funcionamento de órgão constitucional". É a primeira vez que Ana Nicolau vai a tribunal por exercer a sua actividade política, mas não é a primeira pessoa que responde por um crime que não considera sê-lo.

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No dia 2 de Março cumprem-se três anos sobre uma das maiores manifestações que a democracia portuguesa conheceu, convocada pelo movimento “Que se lixe a Troika!” e que mobilizou 31 cidades portuguesas. Também é o dia em que Ana Nicolau, activista do mesmo movimento social, vai a julgamento.

A activista, que nunca militou em nenhum partido político, vai ser julgada por “perturbação do funcionamento de um órgão constitucional”. Em causa está uma acção nas galerias da Assembleia da República a 15 de Março de 2015, quando um grupo de pessoas interrompeu o então primeiro-ministro, Passos Coelho, durante um debate quinzenal na Assembleia República para exigir a sua demissão. Os manifestantes de punho erguido gritaram “Demissão!” e “Metes nojo ao povo!” até serem retirados pela PSP.

Do grupo de cerca de dez pessoas que esteve nas galerias nessa tarde, só Ana Nicolau é que irá a julgamento, e não sabe porquê. Ter-lhe-á sido oferecida a hipótese de pagar uma multa para não ir a Tribunal, mas recusou.

É a primeira vez que Ana Nicolau tem problemas com a justiça – ou que a justiça tem problemas consigo. Defende “o direito à liberdade de expressão” e acredita muito “no artigo 2º da Constituição Portuguesa, que almeja o aprofundamento da democracia participativa”. Mas Ana Nicolau não é a primeira pessoa que, pelo exercício da sua actividade política, é levada a tribunal pelo Estado democrático. Nos últimos anos houve vários casos.

Em 2007, no Dia do Estudante, um grupo de estudantes do Ensino Superior teve uma acção semelhante à de 15 de Março de 2015. Estava em debate o novo regime jurídico do Ensino Superior, e das galerias cerca de 20 pessoas gritaram “não, não, não à privatização!”. Também elas foram retiradas pela PSP e identificadas à saída do Parlamento. Semanas depois receberam em casa cartas que determinavam que estavam sob Termo de Identidade e Residência.

Metade das pessoas que foram notificadas decidiram pagar a multa indicada, perto de 100€. Mas Ana Alves e Bruno Carvalho, dois dos estudantes que estiveram na AR nesse dia, rejeitaram peremptoriamente essa hipótese. Ana recusou, “não porque fosse muito, mas porque era ridículo”, e Bruno porque “pagar seria aceitar a culpabilidade”. Nenhum dos dois reconhece qualquer criminalidade naquilo de que estavam imputados – perturbação do funcionamento de um órgão constitucional, o mesmo que Ana Nicolau.

Quando o caso de Ana, Bruno e cerca de oito outros activistas chegou a julgamento, “o colectivo de juízes ficou surpreendido com o facto de terem levado aquilo até ali”, diz Bruno Carvalho. “Eles próprios consideraram que nós estávamos no pleno exercício de um direito cívico”. Quase três anos depois da manifestação, todos os arguidos foram absolvidos.

Bruno Carvalho só dessa vez foi a tribunal mas é um activista convicto: “Em 16 anos de militância, fui identificado pela PSP seguramente mais de 40 vezes”, diz. Uma delas durante a Cimeira da NATO, enquanto distribuía panfletos anti-NATO. “Isto demonstra como em Portugal é fácil ser julgado pela actividade política que se tem”, afirma Bruno Carvalho.

Uma das avogadas que defendeu Ana Alves e Bruno Carvalho, e que também trabalhou no processo de Ana Nicolau, é Lúcia Gomes. Têm passado vários destes casos pelas mãos da advogada, e a própria refere que o caso de 2007 “talvez tenha sido o primeiro destes processos a ir julgamento”. Lúcia Gomes expressa algum cepticismo com este tipo de casos. Não vê cabimento em que pessoas que “na chamada casa da democracia demonstrem a sua discordância” acabem por ser levadas a tribunal. Mas no acórdão do caso de 2007 “a sentença reconheceu-lhes o direito à indignação”.

Ana Nicolau também esteve presente quando pela primeira vez se cantou a Grândola, Vila Morena nas Galerias da AR, em 2013, e alguns dos presentes nesse dia foram constituídos arguidos do mesmo crime. O caso foi arquivado e no despacho de arquivamento, revela a advogada, “refere-se que a Grândola, Vila Morena é um símbolo de luta, e que as pessoas contempladas exprimiram de forma respeitosa a sua indignação”.

Acrescenta que, não obstante o crime de que estes activistas são imputados, “os trabalhos no Parlamento nunca são realmente interrompidos”. De facto, as interrupções duravam apenas alguns minutos, enquanto a presidente da AR ordenava a expulsão dos manifestantes. A maioria destes casos foram durante  o governo PSD/CDS (apesar do primeiro caso ter sido durante um governo do PS), e afirma Lúcia Gomes que estas acções eram “uma tentativa de criminalização do protesto”.

O advogado José Preto acredita que “há um grande nervosismo” entre os grupos partidários “relativamente a novos movimentos contestatários”. O advogado lisboeta não tem “dúvida nenhuma” de que se trata de intimidação política. Afirma ainda que se está a assistir à “ascensão de uma geração política de conservadores, gente que ainda não aceitou a descolonização, e que conhece um exercício de poder militarista e colonial”.

Não são só activistas de esquerda que são alvo destes processos intimidatórios, como os descreve o advogado. O próprio defendeu Duarte Branquinho, à data director do jornal O Diabo, e acredita que os “ataques jurídicos” são feitos à esquerda e à direita. “A direita radical também tem algumas aventuras divertidas”.

Ainda assim, pela mudança de governo, nos próximos anos deveremos assistir a uma redução de processos-crime instaurados contra activistas políticos – “a experiência ensina-nos que sim”, diz o advogado.

Entre 2007 e 2013 foram instaurados 89 processos-crime por perturbação do funcionamento de órgão constitucional, com 113 pessoas levadas a tribunal para responder por esse crime. Desses 113 arguidos, 89 foram condenados em 1ª instância. Em 2013, último ano dos registos disponíveis no Ministério da Justiça, foram abertos 16 inquéritos, e todos os anos há mais processos instaurados do que no ano anterior.

Lúcia Gomes, advogada, relembra que quando, a 19 de Fevereiro, foram promulgadas a lei da adopção sem discriminação e da Interrupção Voluntária da Gravidez, houve pessoas que se levantaram e aplaudiram nas galerias. “Isto foi em jeito de celebração e não foi constituído crime”.

Ana Nicolau, activista política desde a juventude, agradece toda a solidariedade que tem recebido de muitos quadrantes políticos e sociais, mas tem uma dúvida. “Eu sei que quando for a julgamento não vou estar sozinha no banco dos réus. Mas se tivesse aplaudido o primeiro-ministro, também lá estaria?”

Texto editado por Leonete Botelho

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