Bruno Bravo, escultor da palavra

Acrescenta mais um espantoso capítulo às suas construções teatrais a partir de textos literários. Atirado para o centro do palco, Pinocchio sofre com dores de crescimento e rodeado de vozes que o manipulam. Como a uma criança, como a um boneco.

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Há uma busca pelo lirismo no gesto de remexer nos textos literários até lhes achar um corpo teatral; um lirismo que tem o modelo grego a palpitar na cabeça de Bruno Bravo Eduardo Breda

Esta história não é sobre um rei. É sobre um bocado de madeira. “Não uma madeira luxuosa, não uma madeira fina”, mas “um pau daqueles que no Inverno se põe nas lareiras e nos fogões para acender o lume e aquecer as casas”. Esse pedaço de madeira vulgar, pronto a servir de alimento ao fogo, poderia ter sido transformado na perna de uma mesa pelas mãos de Geppetto. Mas o velho Geppetto decide-se antes por esculpir um “boneco maravilhoso, que saiba dançar, fazer esgrima e dar saltos mortais”, uma criação de tal forma esplendorosa que haveria de lhe permitir correr mundo com o boneco e ganhar essa faustosa fortuna que lhe garantiria “um naco de pão e um copo de vinho”. Desde o início, portanto, a história de Pinocchio, publicada pelo escritor italiano Carlo Collodi em 1881, arrasta consigo estas duas imagens – uma fundada na pobreza, a outra na manipulação de que o boneco/a criança é alvo.

Na adaptação e encenação de Bruno Bravo para os Primeiros Sintomas (Teatro Maria Matos, Lisboa, até 5 de Março) vemos primeiro Pinocchio como um boneco de ventríloquo, um ser moldado pelos olhos de outro(s), uma infância passada a pensar como ser ele próprio num mundo grotesco de adultos. Bravo empurra Pinocchio para a frente, puxa Geppetto para trás e cria um falso monólogo do boneco/criança que encontra num coro inspirado nas tragédias gregas a intervenção desse mundo adulto, “representado por figuras antropomórficas inspiradas nas ilustrações do livro”. Quatro coelhos, uma coruja, um burro, uma raposa, um gato, um grilo e um arlequim enfiados em corpo humano, cujas vozes vogam e se cruzam, aqui e ali, com as dos próprios Geppetto e Pinocchio, aproximando a narrativa de um sonho ou, prefere o encenador, de terrores nocturnos.

Tudo se articula nessa ideia de que o quarto de uma criança se pode tornar no cenário de uma descontrolada fantasia, em que os bonecos se erguem da escuridão para se transformar em adultos castigadores, em que o mundo reconhecível se torna ameaçador e em que da imobilidade se erguem os medos mais... paralisantes. No limite, assume Bruno Bravo, em Pinocchio como nas suas anteriores incursões por textos literários levados até ao palco, o encenador investiga essa fronteira última em que “o teatro pode ser corpo e voz, o que se ouve e o que se vê”. “Talvez o teatro tenha também esta possibilidade de, um pouco como a literatura, provocar a imaginação, conseguir construir ambientes a partir da palavra, da oralidade. É isso que me fascina na literatura e na hipótese de trabalhar isso em teatro. E há um motivo também que é a curiosidade de perceber como é que o trabalho do actor e da encenação lidam com isso, onde é que podem ser levados.”

Há uma busca pelo lirismo nesse gesto de remexer nos textos literários até lhes achar um corpo teatral; um lirismo que, mais uma vez, tem o modelo grego a palpitar na cabeça de Bruno Bravo. “Tenho um grande fascínio pela tragédia grega”, assume, “sobretudo naquilo que a tragédia propõe que é absolutamente contemporâneo e que está muito ligado a este movimento lírico.” Se Pinocchio avança para o centro do palco assumindo uma dimensão lírica, fá-lo contaminado pelas experiências anteriores dos Primeiros Sintomas com textos de Oscar Wilde – Salomé e O Retrato de Dorian Gray –, numa descida que crava cada vez mais fundo a literatura como matéria-prima para os espectáculos da companhia.

Ao ter de debruçar sobre os textos um olhar que não pode valer-se apenas de uma perspectiva dramática, Bravo convoca também um mistério daquilo que o teatro pode ser, trocando as linhas com que se cose, trabalhando com menos respostas do que interrogações. Diante de cada texto eleito, há todo um exercício de esgravatação até encontrar nele uma peça de teatro que não se limite a colocar em cena um livro, nem lhe traia o sentido. Até mesmo em Dorian Gray, ao contrário do que pensava de início – “o livro tem muitos diálogos, incríveis, e inocentemente achei que os diálogos não seriam um problema, mas sim tudo o resto”, confessa – a complexidade viria da ausência de um natural fôlego dramático no texto, que fazia com que as palavras levantadas no palco tropeçassem de imediato no seu virtuosismo literário.

Sem resposta
“Era uma vez… Um rei! – dirão imediatamente os meus pequenos leitores.” Assim começam As Aventuras de Pinóquio (trad. Margarida Periquito, ed. Cavalo de Ferro) pela pena de Collodi. Pinocchio terá sido pensado como texto para a infância, apesar de na sua primeira versão o protagonista acabar enforcado, mas resulta como um texto sobre a infância, uma infância manipulada pelas “dores de crescimento”, lembra Bruno Bravo, aludindo a angústias emocionais e morais mais do que tíbias ou fémures a esticarem-se durante a noite. Quando, ouvindo a confissão de desagrado da criança em ter de frequentar a escola, Geppetto lhe propõe que aprenda um ofício, o menino de pau anuncia que o único ofício de que realmente gosta é “o de comer, beber, dormir, divertir-me”. Em palco, a imobilidade e o ventriloquismo fantoche de Pinocchio ilustram também esse papel que cumpre a mando dos outros. E o rosto miúdo da actriz Carolina Salles apenas tornam mais ferozes esses comportamentos impostos, a mostragem sucessiva de “cartões morais”.

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“Há este percurso, esta coisa de ele se querer cumprir rapaz ou de tudo à sua volta do ponto de vista social lhe indicar isso”, considera o encenador. “E não tenho a certeza se o final é um final feliz, porque ao cumprir-se rapaz acaba por ser mais um boneco.” A tentativa de afirmação, de procurar a liberdade e assumir livremente quem quer e aspira a ser, na opinião de Bruno Bravo liga Pinocchio a outros textos clássicos, lembrando-o, particularmente de Baal, de Bertolt Brecht. Brecht, aliás, é um autor inscrito muito profundamente no seu percurso, em especial no início como actor, tendo-se juntado aos Artistas Unidos para participar, em 1997, em O Fim ou Tende Misericórdia de Nós, sendo depois dirigido por Jorge Silva Melo nos textos do dramaturgo alemão A Queda do Egoísta Johann Fatzer, Aos que Nascerem Depois de Nós Canções do Pobre BB e Na Selva das Cidades. Em 2001, deixaria a convivência com os Artistas Unidos para se dedicar aos seus espectáculos enquanto fundador – com Sandra Faleiro – dos Primeiros Sintomas.

Começando por adaptar Frankenstein, de Mary Shelley, os anos inaugurais dos Primeiros Sintomas ficariam marcados por uma relação estreita com o autor Miguel Castro Caldas, responsável por textos originais mas também por peças inspiradas em Conto de Natal, Peter Pan, Os Assassinos ou As Bodas de Figaro, e que se estendeu até 2008. Aos poucos, concentrando-se no seu lugar de encenador, Bruno Bravo começou a tomar o pulso aos clássicos, depois de uma primeira abordagem avulsa a Endgame, de Beckett. No regresso a Beckett e ao embarcar numa trilogia dedicada à mulher, em 2009, com Lindos Dias, Hedda Gabler (Ibsen) e Menina Júlia (Strindberg), deixou-se seduzir pela falta de controlo que o palco pode representar. “A Hedda Gabler foi um processo de tal maneira violento e monstruoso para mim, no melhor dos sentidos, que tendo lido e estudado a peça só quando começámos os ensaios é que aquilo começou a abrir campos quase inimagináveis e geniais.” Nasceu também aí a estupefacção diante da palavra. Ibsen, “um arquitecto” – chama-lhe o encenador –, esquivava-se a qualquer tentativa de cortar o texto. Parecia um castelo de cartas: de cada vez que tentavam subtrair-lhe uma frase ou uma frase sequer, lembra, a peça desmoronava-se à sua frente.

É esse deslumbramento diante do mistério que um texto pode encerrar que voltamos a descobrir na abordagem a Oscar Wilde ou a este Pinocchio, no entendimento espantado de que “há coisas que não têm resposta”. Em Pinocchio, coabitam “a ideia de liberdade, a moral terrível da sociedade, o egoísmo, o ócio visto como uma doença, as mentiras belas” amparadas na imaginação, a partir desse território estranho que é a infância, algo arrumado no passado – onde cada um de nós já esteve, de que não se lembra bem e que pode encerrar este potencial terrífico. A mentira, aliás, funde-se com a própria essência do teatro, como se o faz-de-conta em cena fosse um lastro dessa infância. “Como se o teatro”, termina Bruno Bravo, “fosse uma brincadeira a sério”, magnífica, ameaçadora, transformadora.

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Eduardo Breda
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