Uma dança com asas

A condução certeira do texto numa encenação que se liberta da palavra e dá asas à dança é a melhor qualidade desta peça.

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Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a Paulo Pimenta
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A arte de questionar como se faz a arte dentro da própria arte é hoje um modelo com tradição. Foi o que fez Tchekov num gesto vanguardista com A Gaivota (1896) – peça que originou esta nova coreografia de Victor Hugo Pontes. Na obra de Tchekov, o teatro não é cena de uma narrativa épica mas sim de vicissitudes da vida social do meio artístico, agregados ao drama com desenlace trágico de um jovem dramaturgo. Hugo Pontes seguiu à risca o texto, mas também testou, à sua maneira, os limites do seu meio de encenação: a dança teatral.

A forma como o coreógrafo assegura uma condução muito clara de acções e relações a partir do texto mas, ao fazê-lo, se liberta da palavra e dá asas à dança é a melhor qualidade desta peça. O guião narrativo, tradicional no ballet, é renovado por um teatro físico de alta definição, sem mímica redutora, que incide na atitude (por exemplo altiva, carinhosa ou provocadora), na dinâmica (entre suavidade e sofreguidão) e posicionamento (como duas pessoas mexerem-se frente a frente ou de costas viradas).

A elaborada partitura coreográfica articula fluentemente os movimentos significantes e relaciona, com coerência, uma ampla paleta de estilos de que dispõe a composição contemporânea. O virtuosismo das danças urbanas (uma atracção do coreógrafo conhecida) está muito bem integrado e executado: é delicioso ver as triplas piruetas de chão e os flick flack ondulados participarem no enredo de Tchekov entre códigos da dança erudita igualmente bem digeridos.

Apesar dos poucos uníssonos e de abundarem as partilhas breves, os contágios e transferências rápidos, ou suspensões da participação colectiva, todos os bailarinos estão solidamente envolvidos num propósito unificador. A cadeia relacional das personagens n’A Gaivota – do tipo A ama B, que deseja C, que se entrega a D, que é cônjuge de E, que idolatra F... e por diante – gera uma energia centrípeta, espelhada na coreografia, por exemplo, com corridas que irrompem por uma cena adentro.

Reencontramos em Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a a destreza e perspicácia em conciliar disciplinas que já antes distinguiu este artista e os seus colaboradores: a luz é eficazmente cenográfica, a cenografia é habilmente dramatúrgica, a sonoridade é tridimensional e os figurinos discretos são expressivos. Mais do que transgredir, esta peça de dança dramática e ritmicamente fluida valoriza-se muito por assimilar e reconfigurar.

O seu calcanhar de Aquiles é, pessoalmente, a vulnerabilidade das figuras femininas, pouco justificada e com sinais óbvios: como quando Vera Santos (Paulina), depois de acrobaticamente elevada (pelo próprio VHP), é lançada ao chão sem piedade; como a adoração possessiva de Treplev por Nina, que ele arrasta pelo pescoço violentamente; e custa ver a magnífica Leonor Keil (como Arkadina) – várias vezes venerada e suportada em plinto pelos homens – sucumbir submissa perante o seu amante (Trigorin).

Sabemos que a mulher mais naturalmente oferece a vida própria, porventura confundindo desejo e amor, fruto do instinto maternal complacente. Mas esta representação desigual ou era devidamente comentada ou é desanimadora, após um século de grande evolução da condição feminina; tanto mais quando a obra também aborda o poder e o sucesso profissional no mundo das artes.

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